O Estado de S.Paulo - 11/12
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, visitou a China no começo de dezembro acompanhado de numerosa comitiva empresarial. Estava em busca de investimentos chineses nas ilhas britânicas e de reaproximação com Beijing, depois de ter caído em desgraça por ter encontrado o Dalai Lama. Em meio à visita, o jornal chinês Global Times, de propriedade estatal, comentou que a Grã-Bretanha seria apenas um destino de turistas e estudantes, com uns poucos times de futebol decentes...
O episódio suscita reminiscências históricas. Em 1792-1793, Lord Macartney chefiou uma delegação britânica que buscou obter concessões do imperador Qianlong: acesso ao mercado chinês, cessão de uma ilha perto de Xangai, como entreposto comercial, e estabelecimento de embaixada permanente em Beijing. O ritual da corte chinesa exigia que os embaixadores fizessem o kotow: três genuflexões, a cada uma tocando o solo três vezes com a cabeça. Macartney recusou-se: seria aceitar a vassalagem da Grã-Bretanha à China. Sua missão não teve sucesso, embora a falta de kotow não pareça ter sido vital: os documentos chineses continuaram a referir-se aos britânicos como "bárbaros" e a instar a "trêmula obediência" de seu monarca. A China era o "império imóvel", desinteressada em manter relações com o mundo exterior, a despeito da renda per capita ser provavelmente um terço da britânica. Cinquenta anos depois, as reivindicações britânicas seriam bem mais agressivas, com a guerra do ópio culminando na cessão de Hong Kong. Por mais de um século, a China teve a sua soberania violada por tratados assimétricos com inúmeras concessões territoriais para potências europeias menores e, militarmente, pelo Japão. Até mesmo o Brasil, de olho na imigração de coolies, pegou carona na extração de concessões do império agonizante. O tratado de amizade, comércio e navegação de 1881 entre a China e o Brasil estabelecia que brasileiros que cometessem, na China, crimes contra chineses seriam presos pelas autoridades consulares brasileiras e punidos segundo as leis do Brasil.
Os tempos mudaram. Depois de mais de dois séculos, Cameron fez um kotow moderno, com as posições transpostas em relação ao final do século 18, reconhecendo a atual posição proeminente da China na economia global. Julgou-se que a modesta humilhação seria justificável do ponto de vista econômico.
No caso do Brasil, a posição da China é ainda mais relevante. Em meio à inércia da diplomacia comercial brasileira, vai sendo consolidada a posição do País como exportador de commodities para a China. Por outro lado, gradativamente a China tem ampliado a sua participação nas importações brasileiras e o Brasil vem enfrentando concorrência chinesa que desloca produtos industriais brasileiros em seus mercados tradicionais.
As perspectivas exportadoras brasileiras são favoráveis. Dependem do ritmo da urbanização chinesa (minério de ferro), da velocidade de convergência da dieta chinesa para padrões ocidentais (soja) e das perspectivas de produção de petróleo pela China, incluindo gás de xisto. O Brasil é importante fonte de recursos naturais requeridos pelo rápido crescimento da economia chinesa. Não há nada de mau nisso. Sem as suas commodities competitivas, o Brasil estaria em situação bem pior. Mas a perspectiva de perpetuação dessa posição é incômoda.
A relação com a China deve ocupar por longo tempo posição crucial na agenda externa do Brasil. A despeito disso, falta reflexão sobre as relações econômicas e políticas com a China no longo prazo. Idealmente, o esforço de análise deveria ser realizado num quadro de radical rearrumação das ideias quanto ao futuro papel do Brasil na economia global. Ganha força a percepção de que é preciso abandonar o atual modelo fechado e medíocre. Desatracar do bolivarianismo e do kirchnerismo faria bem ao Brasil.
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, visitou a China no começo de dezembro acompanhado de numerosa comitiva empresarial. Estava em busca de investimentos chineses nas ilhas britânicas e de reaproximação com Beijing, depois de ter caído em desgraça por ter encontrado o Dalai Lama. Em meio à visita, o jornal chinês Global Times, de propriedade estatal, comentou que a Grã-Bretanha seria apenas um destino de turistas e estudantes, com uns poucos times de futebol decentes...
O episódio suscita reminiscências históricas. Em 1792-1793, Lord Macartney chefiou uma delegação britânica que buscou obter concessões do imperador Qianlong: acesso ao mercado chinês, cessão de uma ilha perto de Xangai, como entreposto comercial, e estabelecimento de embaixada permanente em Beijing. O ritual da corte chinesa exigia que os embaixadores fizessem o kotow: três genuflexões, a cada uma tocando o solo três vezes com a cabeça. Macartney recusou-se: seria aceitar a vassalagem da Grã-Bretanha à China. Sua missão não teve sucesso, embora a falta de kotow não pareça ter sido vital: os documentos chineses continuaram a referir-se aos britânicos como "bárbaros" e a instar a "trêmula obediência" de seu monarca. A China era o "império imóvel", desinteressada em manter relações com o mundo exterior, a despeito da renda per capita ser provavelmente um terço da britânica. Cinquenta anos depois, as reivindicações britânicas seriam bem mais agressivas, com a guerra do ópio culminando na cessão de Hong Kong. Por mais de um século, a China teve a sua soberania violada por tratados assimétricos com inúmeras concessões territoriais para potências europeias menores e, militarmente, pelo Japão. Até mesmo o Brasil, de olho na imigração de coolies, pegou carona na extração de concessões do império agonizante. O tratado de amizade, comércio e navegação de 1881 entre a China e o Brasil estabelecia que brasileiros que cometessem, na China, crimes contra chineses seriam presos pelas autoridades consulares brasileiras e punidos segundo as leis do Brasil.
Os tempos mudaram. Depois de mais de dois séculos, Cameron fez um kotow moderno, com as posições transpostas em relação ao final do século 18, reconhecendo a atual posição proeminente da China na economia global. Julgou-se que a modesta humilhação seria justificável do ponto de vista econômico.
No caso do Brasil, a posição da China é ainda mais relevante. Em meio à inércia da diplomacia comercial brasileira, vai sendo consolidada a posição do País como exportador de commodities para a China. Por outro lado, gradativamente a China tem ampliado a sua participação nas importações brasileiras e o Brasil vem enfrentando concorrência chinesa que desloca produtos industriais brasileiros em seus mercados tradicionais.
As perspectivas exportadoras brasileiras são favoráveis. Dependem do ritmo da urbanização chinesa (minério de ferro), da velocidade de convergência da dieta chinesa para padrões ocidentais (soja) e das perspectivas de produção de petróleo pela China, incluindo gás de xisto. O Brasil é importante fonte de recursos naturais requeridos pelo rápido crescimento da economia chinesa. Não há nada de mau nisso. Sem as suas commodities competitivas, o Brasil estaria em situação bem pior. Mas a perspectiva de perpetuação dessa posição é incômoda.
A relação com a China deve ocupar por longo tempo posição crucial na agenda externa do Brasil. A despeito disso, falta reflexão sobre as relações econômicas e políticas com a China no longo prazo. Idealmente, o esforço de análise deveria ser realizado num quadro de radical rearrumação das ideias quanto ao futuro papel do Brasil na economia global. Ganha força a percepção de que é preciso abandonar o atual modelo fechado e medíocre. Desatracar do bolivarianismo e do kirchnerismo faria bem ao Brasil.