O GLOBO - 19/12
‘As manifestações da população nas ruas mostraram que há uma crise muito profunda no modelo de representatividade. A origem desse mal está no sistema eleitoral.” Desse diagnóstico, expresso por seu presidente, Marcus Vinicius Coelho, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) extraiu a ação de inconstitucionalidade contra o financiamento empresarial de campanha em julgamento no STF. A OAB alega defender um princípio político, mas, de fato, promove um fim partidário: a instauração do financiamento público de campanha. Nesse passo, a entidade dos advogados rebaixa-se à condição de linha auxiliar do PT e agrava o mal que reivindica combater.
“O poder emana do povo, não das empresas”, proclamou o eloquente Coelho, argumentando que o financiamento empresarial viola o princípio da igualdade política e inclina as eleições na direção do dinheiro. Na prática, não é bem assim: os empresários doam para todos os partidos relevantes e são mais generosos com aqueles que ocupam o poder, como evidenciam as prestações de contas do PT nas campanhas de 2006 e 2010. Contudo, em tese, o argumento filosófico tem valor: a sociedade política é constituída por cidadãos, não por companhias. O problema é que, entre os inúmeros princípios constitucionais violados por nosso sistema eleitoral, a OAB selecionou caprichosamente apenas um — e isso converte em vício a aparente virtude de seu impulso reformista.
Nas eleições de 2010, 98% das receitas de Dilma e Serra originaram-se de pessoas jurídicas. Sem uma reforma política e eleitoral, o vácuo nos cofres partidários gerado pela proibição de doações empresariais empurrará o Congresso à aprovação do financiamento público — coincidentemente, uma proposta do PT que não obteve apoio parlamentar. No fim do arco-íris, a ação movida pela OAB completará a estatização dos partidos políticos, tornando-os ainda menos permeáveis à vontade dos cidadãos. O indômito Coelho que invoca a “população nas ruas” serve, efetivamente, aos interesses dos políticos nos gabinetes — e tem especial apreço por certos gabinetes.
No seu principismo seletivo, a OAB ignorou o princípio da liberdade partidária. O Brasil tem cerca de três dezenas de partidos, mas não tem liberdade partidária. Por aqui, curiosamente, um tribunal especializado decide sobre a existência legal de um partido com base em regras arcanas sobre números e distribuição geográfica de assinaturas. A recusa do registro da Rede, de Marina Silva, equivale à cassação da expressão partidária de uma vasta parcela do eleitorado. Coelho não enxerga nesse escândalo uma flagrante inconstitucionalidade. É que os doutos líderes da entidade dos advogados concordam com o traço mais antidemocrático de nosso sistema eleitoral: a natureza compulsoriamente estatal dos partidos políticos.
A Justiça Eleitoral, uma herança do varguismo, cumpre essencialmente a função de oficializar os partidos políticos, um ato que lhes abre as portas para o acesso a recursos públicos (o Fundo Partidário e o horário de propaganda eletrônica). Daí deriva o dinamismo da indústria de criação de partidos, tão ativa quanto a de fundação de sindicatos e igrejas. Um partido é um negócio, que se faz às custas do bolso de contribuintes indefesos. Mas, na santa indignação de Coelho, a invocação do “povo” não passa de uma estratégia retórica. “O poder emana do Estado e dos partidos, não do povo” — diria o presidente da OAB se ousasse ser sincero.
No seu principismo seletivo, a OAB ignorou, ainda, o princípio da liberdade de consciência. A substituição do financiamento empresarial de campanha pelo financiamento público, o fruto provável da ação dos ínclitos advogados, agride diretamente o direito dos cidadãos de não contribuírem com partidos que não representam sua visão de mundo. Diga-me, Coelho: por que devo transferir dinheiro para um anacrônico defensor da ditadura militar, como Jair Bolsonaro, ou para um partido que celebra figuras condenadas por corrupção no STF, como o PT?
A OAB ilude os incautos quando alega se insurgir contra o atual sistema eleitoral. De fato, ao empurrar o Congresso para a alternativa do financiamento público, o que faz é completar o edifício político e jurídico da estatização dos partidos. Nesse passo, os partidos alcançam uma “liberdade” absoluta — isto é, libertam-se inteiramente da necessidade de obter apoio financeiro dos eleitores. Não, Coelho, não venha com esse papo de “povo”: a ação que a OAB patrocina é uma oferenda à elite política e um escárnio do conceito de representação.
Uma reforma democrática do sistema eleitoral solicitaria enfrentar o conjunto das violações de princípios que formam a cena desoladora repudiada pelas “manifestações da população nas ruas”. Intelectualmente, é fácil imaginar um sistema decente. Elimine-se a Justiça Eleitoral: qualquer grupo de cidadãos deve ter o direito de formar um partido e disputar eleições. Fora com o Fundo Partidário: partidos são entes privados e, portanto, devem se financiar junto a seus apoiadores. Fora com as coligações proporcionais: partidos servem para veicular programas, não para comercializar minutos na televisão. Abaixo as campanhas milionárias: voto distrital misto e limitação obrigatória dos custos de propaganda política. Só nesse contexto seria apropriado proibir o financiamento empresarial de campanha e estabelecer limites razoáveis para contribuições privadas.
Na prática, uma reforma segundo essas linhas enfrenta ferrenha resistência da elite política, que se beneficia das inúmeras distorções de nosso sistema eleitoral. Os políticos não querem abrir mão das benesses estatais e dos truques que lhes permitem escapar do escrutínio dos eleitores. Meses atrás, o castelo no qual se entrincheiram foi assediado pelas manifestações de rua. Para sorte deles, e azar nosso, a OAB de Coelho decidiu erguer uma paliçada defensiva.
‘As manifestações da população nas ruas mostraram que há uma crise muito profunda no modelo de representatividade. A origem desse mal está no sistema eleitoral.” Desse diagnóstico, expresso por seu presidente, Marcus Vinicius Coelho, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) extraiu a ação de inconstitucionalidade contra o financiamento empresarial de campanha em julgamento no STF. A OAB alega defender um princípio político, mas, de fato, promove um fim partidário: a instauração do financiamento público de campanha. Nesse passo, a entidade dos advogados rebaixa-se à condição de linha auxiliar do PT e agrava o mal que reivindica combater.
“O poder emana do povo, não das empresas”, proclamou o eloquente Coelho, argumentando que o financiamento empresarial viola o princípio da igualdade política e inclina as eleições na direção do dinheiro. Na prática, não é bem assim: os empresários doam para todos os partidos relevantes e são mais generosos com aqueles que ocupam o poder, como evidenciam as prestações de contas do PT nas campanhas de 2006 e 2010. Contudo, em tese, o argumento filosófico tem valor: a sociedade política é constituída por cidadãos, não por companhias. O problema é que, entre os inúmeros princípios constitucionais violados por nosso sistema eleitoral, a OAB selecionou caprichosamente apenas um — e isso converte em vício a aparente virtude de seu impulso reformista.
Nas eleições de 2010, 98% das receitas de Dilma e Serra originaram-se de pessoas jurídicas. Sem uma reforma política e eleitoral, o vácuo nos cofres partidários gerado pela proibição de doações empresariais empurrará o Congresso à aprovação do financiamento público — coincidentemente, uma proposta do PT que não obteve apoio parlamentar. No fim do arco-íris, a ação movida pela OAB completará a estatização dos partidos políticos, tornando-os ainda menos permeáveis à vontade dos cidadãos. O indômito Coelho que invoca a “população nas ruas” serve, efetivamente, aos interesses dos políticos nos gabinetes — e tem especial apreço por certos gabinetes.
No seu principismo seletivo, a OAB ignorou o princípio da liberdade partidária. O Brasil tem cerca de três dezenas de partidos, mas não tem liberdade partidária. Por aqui, curiosamente, um tribunal especializado decide sobre a existência legal de um partido com base em regras arcanas sobre números e distribuição geográfica de assinaturas. A recusa do registro da Rede, de Marina Silva, equivale à cassação da expressão partidária de uma vasta parcela do eleitorado. Coelho não enxerga nesse escândalo uma flagrante inconstitucionalidade. É que os doutos líderes da entidade dos advogados concordam com o traço mais antidemocrático de nosso sistema eleitoral: a natureza compulsoriamente estatal dos partidos políticos.
A Justiça Eleitoral, uma herança do varguismo, cumpre essencialmente a função de oficializar os partidos políticos, um ato que lhes abre as portas para o acesso a recursos públicos (o Fundo Partidário e o horário de propaganda eletrônica). Daí deriva o dinamismo da indústria de criação de partidos, tão ativa quanto a de fundação de sindicatos e igrejas. Um partido é um negócio, que se faz às custas do bolso de contribuintes indefesos. Mas, na santa indignação de Coelho, a invocação do “povo” não passa de uma estratégia retórica. “O poder emana do Estado e dos partidos, não do povo” — diria o presidente da OAB se ousasse ser sincero.
No seu principismo seletivo, a OAB ignorou, ainda, o princípio da liberdade de consciência. A substituição do financiamento empresarial de campanha pelo financiamento público, o fruto provável da ação dos ínclitos advogados, agride diretamente o direito dos cidadãos de não contribuírem com partidos que não representam sua visão de mundo. Diga-me, Coelho: por que devo transferir dinheiro para um anacrônico defensor da ditadura militar, como Jair Bolsonaro, ou para um partido que celebra figuras condenadas por corrupção no STF, como o PT?
A OAB ilude os incautos quando alega se insurgir contra o atual sistema eleitoral. De fato, ao empurrar o Congresso para a alternativa do financiamento público, o que faz é completar o edifício político e jurídico da estatização dos partidos. Nesse passo, os partidos alcançam uma “liberdade” absoluta — isto é, libertam-se inteiramente da necessidade de obter apoio financeiro dos eleitores. Não, Coelho, não venha com esse papo de “povo”: a ação que a OAB patrocina é uma oferenda à elite política e um escárnio do conceito de representação.
Uma reforma democrática do sistema eleitoral solicitaria enfrentar o conjunto das violações de princípios que formam a cena desoladora repudiada pelas “manifestações da população nas ruas”. Intelectualmente, é fácil imaginar um sistema decente. Elimine-se a Justiça Eleitoral: qualquer grupo de cidadãos deve ter o direito de formar um partido e disputar eleições. Fora com o Fundo Partidário: partidos são entes privados e, portanto, devem se financiar junto a seus apoiadores. Fora com as coligações proporcionais: partidos servem para veicular programas, não para comercializar minutos na televisão. Abaixo as campanhas milionárias: voto distrital misto e limitação obrigatória dos custos de propaganda política. Só nesse contexto seria apropriado proibir o financiamento empresarial de campanha e estabelecer limites razoáveis para contribuições privadas.
Na prática, uma reforma segundo essas linhas enfrenta ferrenha resistência da elite política, que se beneficia das inúmeras distorções de nosso sistema eleitoral. Os políticos não querem abrir mão das benesses estatais e dos truques que lhes permitem escapar do escrutínio dos eleitores. Meses atrás, o castelo no qual se entrincheiram foi assediado pelas manifestações de rua. Para sorte deles, e azar nosso, a OAB de Coelho decidiu erguer uma paliçada defensiva.