O Estado de S.Paulo - 27/12
Para Pedro, Lucas, Felipe e Stella
Estava procurando presente para Stella, minha neta, quando Márcia, minha mulher, apontou para uma porta na Vila Madalena: aqui sempre tem. Somente na saída vi o nome, Fábrica. Dentro, um mundo encantado. O cheiro da loja me aguçou, era familiar. Havia ali todo tipo de coisas em madeira, tecidos, plásticos.
Súbito, percebi que era o mesmo cheiro da grande loja de brinquedos de minha infância, a Barbieri, em Araraquara. Um palácio. Um dos programas em dezembro era passar pela Barbieri para olhar vitrines e o Papai Noel que ficava na marquise. Naquele tempo, anos 40, em plena guerra, as lojas de brinquedos eram poucas, traziam algumas bonecas de pano, celuloide ou louça, trens, caminhões carros de bois, bicicletas de madeira, mesinhas para chá de boneca, casas de boneca. Os filhos dos pobres e dos remediados ganhavam um presente no aniversário e outro no Natal. Nada mais. Como filho de ferroviário eu era remediado, mas nunca senti nenhuma diferença. A meninada me parecia igual.
Acompanhado por uma atendente morena, cabelo curtinho, eu andava entre as prateleiras da Fábrica e, súbito, estremeci. Dei com um caminhãozinho de madeira reciclada, cabine colorida. Ainda existem, pensei. Simples, despretensioso, ele me teletransportou no tempo.
Naquele Natal, setenta anos atrás, ganhei um caminhãozinho de madeira com a carroceria cheia de toras. Tinha sido minha escolha na vitrine da casa Barbieri. Aquele brinquedo era a miniatura dos grandes caminhões que passavam pelas ruas levando troncos enormes para as grandes serrarias. Na serraria do Hugo Negrini, vizinha à minha casa, havia uma imensa serra de fita que passava o dia a cortar lâminas de madeira para serem transformadas em móveis. Aquela serra, para nós crianças, era a "fábrica" da serragem, que no Natal usávamos para "fingir" que era a terra do presépio e, aos domingos, os pais colocavam nas bacias para manter a temperatura das barras de gelo sob as quais repousavam as cervejas do almoço. Geladeiras? Poucos tinham.
A serra produzia um cheiro forte e doce de cedro que tomava o ar, perfume que se espalhava pelo bairro. Todas estas coisas foram revividas quando entrei na loja na Vila Madalena. Memória afetiva. Naquela manhã de Natal, acordei, olhei debaixo da cama, lá estava o embrulhinho. Abri com cuidado o pacote, minha mãe recomendava não rasgar o papel, poderia ser reutilizado. Ali estava o caminhãozinho de toras desejado há meses. Brinquei no meu quintal até ouvir a molecada chegando na rua. Estava na hora de sair à calçada para "exibir" o presente. Olhar, comparar, curtir, era uma hora feliz, puro prazer. Aquele caminhão seria cuidado, usado, brincado até o dia do aniversário, quando viria o próximo. Entre 25 de dezembro e 31 de julho se passariam seis meses. Tudo bem. Só não gostava de meu aniversário porque era o odioso último dia das férias.
Brinquei, mostrei, emprestei um pouco para este, para aquele e ouvi minha mãe me chamar por qualquer razão. Nossa, como as mães adoravam chamar quando estávamos na rua nos divertindo. Mãe chamava, tinha de correr! Voei, deixando meu caminhãozinho na calçada, com outro menino vigiando. Não me lembro porque ela me chamou. Quando voltei, meu brinquedo tinha desaparecido. Ninguém soube dizer quem o levou. Por meses, desesperado busquei, tentando encontrar um menino com um brinquedo como o meu. Nada. Em casa levei pito (dizia-se pito) e castigo para aprender a cuidar das coisas. Assim se preparava para a vida.
Quando contei a história à atendente da loja, ela arregalou os olhos: "Pois vou dar esse caminhãozinho para o senhor." Não deixei, era um vazio meu, uma coisa entre mim e minha vida. Circulei pela Fábrica, encontrei o presente da Stela, esqueci a história. No almoço deste Natal, ganhei um pequeno pacote de Márcia. Abri, ali estava o caminhãozinho.
Para Pedro, Lucas, Felipe e Stella
Estava procurando presente para Stella, minha neta, quando Márcia, minha mulher, apontou para uma porta na Vila Madalena: aqui sempre tem. Somente na saída vi o nome, Fábrica. Dentro, um mundo encantado. O cheiro da loja me aguçou, era familiar. Havia ali todo tipo de coisas em madeira, tecidos, plásticos.
Súbito, percebi que era o mesmo cheiro da grande loja de brinquedos de minha infância, a Barbieri, em Araraquara. Um palácio. Um dos programas em dezembro era passar pela Barbieri para olhar vitrines e o Papai Noel que ficava na marquise. Naquele tempo, anos 40, em plena guerra, as lojas de brinquedos eram poucas, traziam algumas bonecas de pano, celuloide ou louça, trens, caminhões carros de bois, bicicletas de madeira, mesinhas para chá de boneca, casas de boneca. Os filhos dos pobres e dos remediados ganhavam um presente no aniversário e outro no Natal. Nada mais. Como filho de ferroviário eu era remediado, mas nunca senti nenhuma diferença. A meninada me parecia igual.
Acompanhado por uma atendente morena, cabelo curtinho, eu andava entre as prateleiras da Fábrica e, súbito, estremeci. Dei com um caminhãozinho de madeira reciclada, cabine colorida. Ainda existem, pensei. Simples, despretensioso, ele me teletransportou no tempo.
Naquele Natal, setenta anos atrás, ganhei um caminhãozinho de madeira com a carroceria cheia de toras. Tinha sido minha escolha na vitrine da casa Barbieri. Aquele brinquedo era a miniatura dos grandes caminhões que passavam pelas ruas levando troncos enormes para as grandes serrarias. Na serraria do Hugo Negrini, vizinha à minha casa, havia uma imensa serra de fita que passava o dia a cortar lâminas de madeira para serem transformadas em móveis. Aquela serra, para nós crianças, era a "fábrica" da serragem, que no Natal usávamos para "fingir" que era a terra do presépio e, aos domingos, os pais colocavam nas bacias para manter a temperatura das barras de gelo sob as quais repousavam as cervejas do almoço. Geladeiras? Poucos tinham.
A serra produzia um cheiro forte e doce de cedro que tomava o ar, perfume que se espalhava pelo bairro. Todas estas coisas foram revividas quando entrei na loja na Vila Madalena. Memória afetiva. Naquela manhã de Natal, acordei, olhei debaixo da cama, lá estava o embrulhinho. Abri com cuidado o pacote, minha mãe recomendava não rasgar o papel, poderia ser reutilizado. Ali estava o caminhãozinho de toras desejado há meses. Brinquei no meu quintal até ouvir a molecada chegando na rua. Estava na hora de sair à calçada para "exibir" o presente. Olhar, comparar, curtir, era uma hora feliz, puro prazer. Aquele caminhão seria cuidado, usado, brincado até o dia do aniversário, quando viria o próximo. Entre 25 de dezembro e 31 de julho se passariam seis meses. Tudo bem. Só não gostava de meu aniversário porque era o odioso último dia das férias.
Brinquei, mostrei, emprestei um pouco para este, para aquele e ouvi minha mãe me chamar por qualquer razão. Nossa, como as mães adoravam chamar quando estávamos na rua nos divertindo. Mãe chamava, tinha de correr! Voei, deixando meu caminhãozinho na calçada, com outro menino vigiando. Não me lembro porque ela me chamou. Quando voltei, meu brinquedo tinha desaparecido. Ninguém soube dizer quem o levou. Por meses, desesperado busquei, tentando encontrar um menino com um brinquedo como o meu. Nada. Em casa levei pito (dizia-se pito) e castigo para aprender a cuidar das coisas. Assim se preparava para a vida.
Quando contei a história à atendente da loja, ela arregalou os olhos: "Pois vou dar esse caminhãozinho para o senhor." Não deixei, era um vazio meu, uma coisa entre mim e minha vida. Circulei pela Fábrica, encontrei o presente da Stela, esqueci a história. No almoço deste Natal, ganhei um pequeno pacote de Márcia. Abri, ali estava o caminhãozinho.