O mundo inteiro chora a morte de Nelson Mandela. Para nós, brasileiros,
sua ação representou, além de um apelo forte à consolidação de uma nação
independente, a luta pela liberação do ser humano das amarras, tanto do
racismo, como da revanche. Sua vida foi envolta por uma aura de
grandeza, de decência e de humildade. Ninguém definiu melhor a relação
entre Mandela e seus contemporâneos que sua conterrânea Manphela
Ramphele: ""Não foi ele quem buscou a glória, foi esta que o procurou."
Encontrei-me com Mandela em várias oportunidades. A primeira, em 1995,
dois anos depois dele ter sido eleito presidente da África do Sul. A
última, em maio de 2010. Mandela formara um grupo, o Elders — antigos
líderes dispostos a continuar pelejando pela paz e pela decência no
mundo — e teve a generosidade de me incluir entre os dez escolhidos, Em
nosso último encontro, de maio passado, em Johanesburgo, embora já
fragilizado peia idade e pelas marcas de tantos anos de lutas e
sofrimento, jantou conosco. Continuava lúcido e atento às tragédias do
mundo, principalmente, às que ocorriam na África.
Sua simplicidade e, ao mesmo tempo, a imantação que decorria de sua
presença deixaram marcas fortes nos que conviveram com ele. Há várias
formas para um líder fazer notar sua capacidade de orientar e de
comandar. Alguns a demonstram com energia e denodo. Outros com certa
demagogia e proximidade com os comandados. Há ainda os que utilizam a
persuasão intelectual-emotiva das palavras para serem ouvidos.
Mandela dispensava tudo isso: sua presença de homem esguio, elegante,
suave, com voz entre rouca, estridente, marcante, dava a seus gestos e a
suas palavras uma quase santidade. Por trás de cada movimento seu, sem
que ele precisasse recordar, vinha à memória dos interlocutores — fosse
uma pessoa ou uma multidão — a história de um lutador que não fugiu aos
desafios da luta armada, de um advogado que abraçava as causas dos
humilhados e dominados, do prisioneiro que se igualava aos demais no
trabalho pesado de quebrar pedreiras, do político que, ainda não
liberado, se recusava a compromissos, mas que, tão logo teve a voz
livre, pregou a reconciliação sem mentiras.
Era tão forte a impressão de quase sobre-humano que Mandela deixava
entre os que com ele conviviam, ouviam ou sabiam de suas ações e
palavras que ele próprio se assustou. No último livro que publicou,
"Conversations with myself" (que tive a honra de receber das mãos de
Graça Machel, com dedicatória do autor, quando ela veio a São Paulo
inaugurar, no ano passado, o Centro que leva o nome de quem foi sua
amiga e minha mulher, Ruth Cardoso), Mandela adverte para os erros que
cometeu e recusa o altar em que quase todos o colocaram: "O problema,
naturalmente, é que muitos homens de sucesso se dobram a algumas formas
de vaidade. Chega um momento de suas vidas em que consideram aceitável
serem egoístas e vangloriam-se de suas realizações diante do público em
geral como se fossem únicas" (p. 6).
Contrapondo-se a esta atitude, Mandela deixa uma lição diferente. Há um
estágio na vida no qual cada reformador social se baseia,
fundamentalmente, em plataformas tonitruantes como um modo de se
desculpar dos fragmentos de informação mal digeridas que acumulou em sua
mente; trata-se de tentativas para "impressionar as multidões, em vez
de começar pela simples e calma exposição de ideias e princípios cuja
verdade universal se faz evidente pela experiência pessoal e o estudo
profundo" (p. 41).
Acrescenta ele, "fui vítima das fraquezas de minha geração, não uma, mas
centenas de vezes. Devo ser franco e dizer-lhes que, ao olhar para o
passado e ver meus primeiros escritos e discursos, fico chocado por seu
pedantismo, artificialidade e falta de originalidade. A urgência de
impressionar e de propagandear é claramente perceptível neles" (p. 45).
Na maturidade, declarou com serenidade: "Eu não desejo incitar as
multidões. Desejo que elas entendam o que estamos fazendo; desejo
incutir-lhes o espírito da reconciliação" (p. 326).
Não é preciso acrescentar mais nada para registrar a grandeza de quem
soube mostrar a seu povo e a todos nós o caminho da sinceridade, da
fraternidade e da luta contínua pela igualdade que a simplicidade só faz
enaltecer. Choremos sua morte; guardemos seu testemunho e suas lições.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República (1995-2002)
Fonte: O Globo