A inoperância estrutural do Poder Judiciário, alimentada por leis processuais que adiam ad infinitum a definição final de uma sentença judicial, é a mãe da lei da Ficha Limpa, que nasceu sob o signo da inconstitucionalidade. Uma anomalia pariu outra.
A Ficha Limpa, não obstante o clamor público que atende, viola dois princípios universais do direito, cláusulas pétreas da Constituição Federal brasileira: o inciso LVI, do artigo 5º (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”); e o inciso XL, do mesmo artigo (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).
A Ficha Limpa subtrai direitos de quem ainda não recebeu sentença final – e pode ter as condenações iniciais revertidas - e retroage para punir. Mesmo sendo juridicamente anômala, tornou-se fator saneador das eleições, mas pode trazer complicações futuras.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, teme que um dos efeitos colaterais seja a impugnação de diversos eleitos após a posse, gerando crises políticas em série. Isso porque a impugnação de candidaturas, com base naquela lei, tem ensejado a apresentação de liminares que garantem o registro do candidato para julgamento do mérito a posteriori.
Se eleito, o réu, julgado no mérito, poderá ter seu mandato cassado. É o caso, por exemplo, do ex-governador do DF, Joaquim Roriz, impugnado esta semana pelo Tribunal Regional Eleitoral do DF, por ter renunciado ao Senado em 2007 para fugir à cassação por quebra de decoro. Roriz vai recorrer ao STF e pode obter liminar.
Outros já a obtiveram. Esse, porém, é apenas um aspecto dos problemas colaterais que a lei causa.
Há outros, mais graves. O ministro Eros Grau, que recém se aposentou do STF, falou deles, e causou grande controvérsia entre políticos e juristas. Disse que a lei da Ficha Limpa, pelas transgressões constitucionais já mencionadas, põe em risco nada menos que o próprio Estado democrático de Direito.
As boas intenções, diz ele, não atenuam o precedente que cria, de violação da Constituição. Se o problema está no Judiciário, na sua sobrecarga e nas leis processuais, não se pode simplesmente revogar o devido processo legal – e com ele o direito de defesa – em nome de uma boa causa. No futuro, o mesmo expediente poderá ser acionado em nome de uma má causa.
O que a Ficha Limpa pretende ninguém discorda: moralizar as eleições. Mas a moralidade pública, diz Eros, não é um dado subjetivo, “é a moralidade segundo os padrões e limites do Estado de Direito”. E explica:
“Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para impedir isso, existe o direito. Sem a segurança instalada pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de seus pressupostos, no Estado de Direito, a presunção de não culpabilidade”.
O problema é que, depois de dizer o óbvio, Eros passou a ser chamado injustamente de defensor dos fichas sujas, quando, ao contrário, constatou e lamentou a precariedade de um sistema judicial e político que permitiu que proliferassem – e que pretende agora bani-los sacrificando o direito e a própria Constituição.
Entrevista:O Estado inteligente
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