21 de agosto de 2010
As doutrinas murcham, as utopias desaparecem, a alienação se expande e a política se escancara para abrigar quem dela quer fazer uma profissão e até figuras que a usam como mote para fazer piada. O conceito que a política alcançou entre nós chega ao fundo do poço com esta pergunta ao eleitor feita pelo palhaço Tiririca, candidato nesta eleição: "O que é que faz um deputado federal?" E ele mesmo responde: "Na realidade, não sei. Mas vote em mim que eu te conto." Ninguém se deve surpreender se este candidato conseguir os votos necessários para fazer chiste no palco do Congresso
Nacional, onde se poderá juntar a outros representantes que fizeram ou ainda fazem sucesso com suas habilidades na esfera dos esportes, das artes e dos divertimentos.
Afinal, por que o pleito deste ano, mais do que outros, coopta figuras não tão integradas ao mundo da política, como Maguila, Moacir Franco (que já frequentou a arena parlamentar), Ronaldo Esper, Netinho de Paula, Marcelinho Carioca, Romário ou a pleiteante conhecida como Mulher Pera?
De duas, uma: ou os novos atores políticos foram compelidos a ingressar no espaço público para cumprir relevante missão a serviço de coletividades que representam - e, se for esse o motivo, devem ser aplaudidos - ou a opção se deve ao esgotamento do ciclo profissional e ao vislumbre de uma carreira sob as luzes da democracia representativa. Seja qual for o motivo, o ingresso de celebridades no universo político merece reflexão, por assinalar, de certa forma, o estágio de desenvolvimento social, cultural e político de um povo. A razão para profissionais de outros nichos ingressarem no mundo da política tem que ver com a eleição de uma figura de origem humilde para o cargo mais importante da Nação? Será que, com sua ascensão, Lula teria aberto o caminho para qualquer pessoa, da mais simples à mais elevada, sentir-se motivada a pleitear os postos eletivos da República?
É razoável inferir que a escolha de um ex-metalúrgico para presidir a Nação pode ter contribuído para promover a autoestima de milhões de cidadãos, mas, sob o prisma da relação entre celebridade e política, há componentes quiçá mais apropriados para explicar o fenômeno. O sociólogo francês Edgar Morin, em clássico estudo sobre o comportamento da sociedade contemporânea, descreve o Olimpo da cultura de massas, onde sobressaem artistas, reis, rainhas, princesas, esportistas, mandatários, enfim, uma constelação de astros de todos os espectros que, por seu desempenho nos ambientes social, cultural, artístico e político, ganham ampla visibilidade. E por pertencerem a um seleto mundo, expostas à fosforescência das mídias, tais celebridades compõem uma identidade dual, humano/divina, tornando-se figuras modelares em que se espelham as massas. Assim, o anônimo nas multidões distingue o olimpiano como um ícone no altar da admiração. Em seu cotidiano, procura exercitar a imaginação, identificando-se com atitudes, gestos e gostos dos ídolos admirados, neles projetando valores e princípios de conduta. Portanto, os mecanismos psicológicos da identificação e projeção são acionados para gerar impulso, motivando as massas a correr na direção dos seus "deuses".
Enxertemos, agora, a "galeria idolatrada" no universo da política. Que tipo de reação se pode esperar da massa senão a busca do autógrafo, a liturgia dos apertos de mão, abraços e beijos, a necessidade psicológica de interação espiritual entre "adoradores e adorados"? Abraçar o artista no auge de sua fama significa, para um "pobre mortal", partilhar, mesmo que por segundos, de um cantinho no Olimpo. Donde se chega à ilação: sem demérito para partido e figurantes, celebridade que se candidata a cargo eletivo funciona como anzol de pesca do eleitorado. Quanto mais famosa, mais eleitores arrebanhará, adensando siglas. Votações maiores puxam e elegem candidatos de diminuta expressão. Ao lado desse aspecto, que desvenda estratégia de esperteza e oportunismo, a expansão da participação de artistas e esportistas em campanhas eleitorais aponta, igualmente, para a deterioração dos padrões políticos. Portassem bandeiras em defesa de legítimos interesses de categorias e grupos, os candidatos famosos poderiam desempenhar a função representativa sem críticas a suas atitudes. Não é o caso, porém, de postulantes que debocham da missão para a qual tentam habilitar-se.
Infelizmente, a firula, o drible, as manobras espertas e os recursos extravagantes têm sido adotados sem escrúpulos no processo eleitoral. Plagiam-se propostas, troca-se a ética pela estética e até a imitação da voz de artistas é usada para capturar a atenção de eleitores e conquistar seu voto. Essa é uma faceta rasteira que denota a banalização da política e da despolitização da sociedade. Se o País conseguiu alterar a fisionomia da pirâmide social, com a inserção de cerca de 25 milhões de brasileiros no mercado de consumo, exibe hoje performance desastrosa na frente política, caracterizada, sobretudo, pela privatização da esfera pública. "O poder é meu e eu faço com ele o que quiser." Eis a síntese do ideário que prevalece nestes tempos que exaltam a continuidade. Vale lembrar que o presidente Luiz Inácio, eleito em 2002, começou assim seu discurso: "Mudança, esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro. A esperança finalmente venceu o medo e a sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos."
Quase oito anos depois, o Brasil patina na pista da política. A economia estabilizou-se, a inflação foi domada, os movimentos sociais se organizaram, a renda passou a ser distribuída aos mais carentes e a vida até ficou mais cômoda para os bolsos. A política, porém, continua velha. E a abrigar, de modo passivo, o canhestro desfile nos programas eleitorais de cacarecos, quadros debochados, estroinas e oportunistas. O slogan do palhaço Tiririca soa como profecia: "Pior do que tá não fica."
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO
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