O Estado de S.Paulo - 25/08Q10
A retirada das forças de combate americanas do Iraque não é apenas uma tática do presidente Barack Obama para recuperar popularidade. É necessário examiná-la como componente básico de uma revisão ampla da postura estratégica dos Estados Unidos e, sobretudo, dos elementos políticos mais profundos que existem nesse país.
Desde a derrota no Vietnã, a sociedade americana mostra-se cada vez mais adversa a iniciativas militares em terras distantes. O ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 foi, porém, um caso excepcional na mente do povo americano, pois constituiu um atentado imprevisível e selvagem ao coração de seu território, até então considerado inexpugnável. Assim, a opinião pública mobilizou-se, por um tempo, para um expedição punitiva contra as bases da Al-Qaeda no Afeganistão. Da mesma forma, George W. Bush só conseguiu tornar viável a invasão do Iraque em 2003 com a falsa motivação de eliminar armas de destruição de massa, que também evocava a tragédia de Nova York. Sabe-se hoje que esse enorme equívoco dos serviços de inteligência se deveu a que na primeira Guerra do Golfo, em 1991, foram descobertas instalações nucleares no Iraque muito mais completas do que o esperado e esses serviços não desejavam repetir o engano. Preferiram informar que havia armas atômicas no arsenal de Saddam Hussein.
O Iraque, entretanto, revelou-se um pântano do qual as forças americanas tiveram de acabar saindo, embora sem a humilhação do Vietnã e tendo apenas como principal resultado positivo a derrubada da ditadura de Saddam. Deixam para trás, contudo, um país inseguro e politicamente instável. O Afeganistão já entrou também na agenda de retirada, pois fica cada vez mais claro que a situação militar - a exemplo do que ocorreu com o Império Britânico e com a União Soviética - não permite esperar uma solução vitoriosa. Está em curso em Washington uma discussão sobre o cronograma deste desengajamento.
Qual é o significado profundo destes movimentos americanos? Antes de mais nada, fica claro que não existem mais condições políticas nos Estados Unidos para guerras além-mar. Salvo se houver uma nova tragédia como a do 11 de Setembro, nenhum governante ou parlamentar americano ousará, em futuro previsível, propor operações de combate fora das fronteiras do país. Parece-me inacreditável que esta realidade não seja claramente percebida e que algumas pessoas ainda falem na possibilidade de invasões americanas em diversas partes do mundo, até mesmo na Amazônia!
Em segundo lugar, a dívida pública dos Estados Unidos atingiu níveis estratosféricos - multiplicada pelos enormes resgates de empresas na crise de 2008-2009 -, que ameaçam a estabilidade econômica do país. Para financiá-la os Estados Unidos chegaram a uma grande vulnerabilidade externa, já que dependem das decisões políticas e financeiras de seus credores. Por isso, o orçamento militar americano está sendo reduzido já este ano. É improvável que a superpotência, que parecia tão incontrastável nos anos 1990, possa continuar mantendo suas tropas envolvidas em duas guerras simultâneas, como ainda é o caso.
O Irã representa hoje a maior ameaça à segurança e à paz no mundo. Embora o cronograma iraniano para chegar a uma arma nuclear tenha aparentemente sofrido alguns percalços, não há dúvida de que esse país está bastante avançado nesse rumo. Daí as sanções que as principais potências mundiais fizeram aprovar no Conselho de Segurança da ONU, malgrado o inexplicável voto negativo do Brasil. É importante ressaltar que essas sanções foram longamente negociadas para terem o apoio da China e da Rússia e reforçadas por decisões próprias, ainda mais severas, da União Europeia e dos Estados Unidos. Mas, na hipótese de que tais medidas não evitem o sucesso da corrida nuclear iraniana, será necessário para os Estados Unidos, Israel e a União Europeia decidir que posição tomar. Creio que uma invasão do Irã é impensável e mesmo um ataque aéreo é improvável. No primeiro caso, seria entrar em atoleiro muito maior do que os dois precedentes juntos. No segundo, desencadearia situações de altíssimo risco, como o bloqueio do Golfo Pérsico para o escoamento do petróleo e gás, a difusão de ataques terroristas dos aliados de Teerã, como o Hamas e o Hezbollah, e, sobretudo, atearia fogo às massas islâmicas em todo o mundo. Se o Irã chegar a deter armas nucleares, será necessário encontrar formas políticas de coexistência e contenção de seu radicalismo.
A conclusão principal desta breve análise é a seguinte: existe realmente um declínio relativo do poder americano, se for analisado como capacidade de intervenção para mudar regimes, impor regras e impedir a expansão de organizações inimigas em algumas regiões do mundo. Seria, porém, um sério engano considerar que essa redução de capacidade de utilização de suas enormes forças militares vai diminuir drasticamente o peso específico dos Estados Unidos. O unilateralismo desavisado de George W. Bush é inviável e será substituído por um grande trabalho de ampliar consensos e agir internacionalmente dentro de parâmetros aceitáveis para a opinião pública dos países que contam. Nessas condições, o papel dos Estados Unidos será sempre decisivo, em razão do peso de sua economia, de seus arsenais nucleares e da poderosa Aliança Atlântica, que é basicamente fiel a Washington. Enquanto não surgir uma superpotência com ativos equivalentes aos americanos - e a China, a principal candidata ao posto, não quer brigar tão cedo -, os Estados Unidos continuarão a ser, malgrado seus graves tropeços no Iraque e no Afeganistão, o fator decisivo da política internacional.
FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES(1995-2001)
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