O ESTADO DE SÃO PAULO - 28/08/10
Há uma perspectiva que todos aqueles para os quais a liberdade de expressão é algo fundamental - à profissão, à realização e à vida - não podem mais fingir que desconhecem. As nuvens cinzentas da repressão censória, vindas de diletos hermanos latino-americanos - como a Venezuela, a Argentina e a Bolívia -, já se acumulam nas fronteiras brasileiras e estão prestes a submeter o pensamento nacional ao que funcionários governamentais, representantes sindicais ou burocratas ideólogo-partidários digam ser propício ou não à divulgação pública.
É claro que as tentativas ou medidas já concretizadas de cerceamento da independência e da liberdade dos veículos de comunicação têm sido de graus diversos de sutileza (ou de truculência) e sob pretextos (ou disfarces) variados. Na Venezuela, Hugo Chávez retirou do ar, juntamente com mais cinco emissoras de TV a cabo, a tradicional (de 54 anos) Rádio Caracas Televisão (RCTV), por esta ter desobedecido à ordem de transmitir em cadeia um discurso presidencial. Antes a ditadura Chávez já retirara o sinal aberto dessa emissora, que nunca se enquadrou nos padrões de comunicação exigidos pela "República Bolivariana".
Na Argentina, o casal presidencial Kirchner tem-se utilizado de vários meios - começando pela "Lei da Mídia", julgada inconstitucional - para cercear veículos de comunicação que não lhe são submissos, tendo como seu alvo preferencial o Grupo Clarín, cuja independência editorial incomoda mais os intolerantes Cristina e Néstor. Depois de ter submetido o grupo a uma violenta devassa fiscal, realizada por 200 agentes da Receita na sede das empresas e na residência de seus diretores, e depois de ter "produzido" um boicote de caminhoneiros para impedir a circulação do jornal, o governo Kirchner resolveu atacar o grupo por meio do controle restritivo da produção de papel-jornal, cujo principal fabricante (Papel Prensa) tem no Clarín o maior acionista.
Na Bolívia, em meio a diversas formas de censura e boicote impostas à imprensa, logo que foi reeleito o presidente Evo Morales disse em alto e bom som: "Estamos discutindo um modo de fazer com que os meios de comunicação não mintam." Veja-se a semelhança de visão, mostrada por essas palavras, com a que demonstrou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em discurso durante a recente inauguração de um canal de televisão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, quando disse que a nova emissora impedirá que os trabalhadores "continuem impedidos de exercer a liberdade de expressão" e que "o brasileiro sabe distinguir o que é informação e o que é distorção dos fatos". Certamente essa visão está contida em todos os projetos - aos quais a sociedade brasileira até agora tem resistido - de imposição de um chamado "controle social da mídia".
Na verdade, não tem faltado ao governo Lula a capacidade de inventar mecanismos variados de cerceamento da liberdade de expressão, embutindo-os em programas e projetos com disfarces de maior abrangência. Só para mencionar alguns dos mais recentes: o novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) - que estabeleceu uma classificação dos veículos (inclusive para efeitos de recebimento de publicidade oficial) segundo a avaliação, de comissões "oficiais", do entendimento que tenham sobre direitos humanos; a 1.ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), da qual saíram vários projetos, em tramitação no Congresso Nacional, sobre condições de concessão de canais de rádio e televisão, de sua renovação, de limites e restrições impostos à veiculação de publicidade e pontos que envolvem o modus faciendi da comunicação no País, deixando mais camuflada ou ostensiva a intenção de manipular a opinião pública, tal como o fez o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que assim governou o México durante 71 anos ininterruptos (de 1929 a 2000).
Segundo o Instituto Palavra Aberta, entidade recém-criada, cujas metas são a defesa da liberdade de expressão, da livre-iniciativa e da própria democracia, existem em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal nada menos que 200 projetos restritivos à veiculação publicitária - e não há dúvida de que esse tolhimento é uma das formas de enfraquecimento da sustentabilidade econômico-financeira dos veículos de comunicação. Por tudo isso, as ameaças que pesam sobre a liberdade de expressão, no Brasil, estão próximas demais para dispensarem um novo preparo, uma reciclagem, um reaprendizado de resistência, já que a esta estamos desacostumados desde o fim da ditadura militar. É preciso reaprendermos a romper a mordaça.
No tempo da censura militar usávamos estratagemas para burlar o arrocho à circulação do pensamento. Sabe-se de Os Lusíadas no Estadão, das receitas absurdas no Jornal da Tarde, mas nem todos sabem como no teatro se enganava os censores. Antes de qualquer peça estrear, havia uma sessão para que o censor a aprovasse. Ele ia com o texto da peça e uma lanterninha para ver se os atores estavam dizendo o que estava escrito. Só que, propositalmente, os atores diziam suas falas com relaxamento total, enxugando-as de qualquer interpretação ou insinuação crítica. Houve um censor que, na avaliação, achou uma comédia sem graça e sem sentido, mas depois da estreia, voltando a vê-la com a família (e vendo as gargalhadas do público) tentou, irritado, interditá-la (era uma peça minha).
Convém nos prepararmos para o que deve vir por aí. Assim, já precisamos praticar nossos treinamentos metafóricos e voltar a criar estratagemas para romper a mordaça. Mas não seremos tão pacientes quanto os mexicanos, pois já amadurecemos demais para suportar um regime de censura, mesmo enfeitado pela fantasia mais exuberante de democracia.
JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR.
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