-de Normandia (RR)
Valor Econômico - 26/08/2010
Está na mira do governo federal a área escolhida por parte dos produtores rurais que tiveram de sair da reserva indígena Raposa Serra do Sol por determinação judicial. Parte do município do Bonfim, em Roraima, pode ser transformada em unidade de conservação ambiental e, dessa forma, não poderá ser habitada nem ter exploração agrícola. Um estudo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, prevê a criação do Parque Nacional do Lavrado na região. Moradores reagiram e o governo recuou, ao afirmar que o projeto ainda está em análise. Os proprietários, no entanto, temem que a proposta seja retomada após as eleições.
Quatro grandes arrozeiros que estavam na Raposa Serra do Sol têm plantações no Bonfim, município próximo à reserva. O governo federal identificou quatro áreas onde poderia ser criado o Parque Nacional do Lavrado. O fazendeiro Genor Faccio teme ser afetado novamente.
"Sempre tive consciência de que a máquina da demarcação de terras iria continuar depois da Raposa".
A Vila Surumu, porta de entrada da reserva indígena Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima, já não é mais a mesma. A começar pelo nome: Comunidade do Barro. Nada mais de vila, bairro ou município. Depois que os arrozeiros saíram das terras demarcadas e homologadas, os indígenas resgataram a denominação original da comunidade transformada em vila. Os moradores das primeiras casas também mudaram. Todos têm cabelo liso, pele morena e traços indígenas, diferente do que era há dois anos, quando os produtores rurais, eram os donos. Onde antes era monocultura de arroz na reserva indígena Raposa Serra do Sol agora existem pequenas roças de mandioca, milho, feijão e de arroz. Há também criação de gado, galinha, porco e cavalos. E imensas áreas vazias, sem plantação.
Um ano e cinco meses depois da saída de não indígenas da reserva, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a tensão que marcou a relação entre fazendeiros e índios nos últimos 30 anos, enfim, teve uma trégua.
Os indígenas não deram continuidade à monocultura de arroz nas terras em que estavam os fazendeiros e ainda sofrem com a falta de recursos e de planejamento para ampliar uma produção que não seja a de subsistência. A reclamação mais comum é que depois da retirada dos produtores rurais eles foram esquecidos pelos governos estadual e federal. Quem está no comando das ações pelo desenvolvimento da Raposa Serra do Sol é o Conselho Indígena de Roraima (CIR), principal entidade na luta pela demarcação contínua das terras. Segundo a coordenadora de projetos do CIR, Marizete de Souza Macuxi, a entidade pedirá financiamento de R$ 20 milhões ao BNDES. A proposta inicial era mais ambiciosa, de R$ 73 milhões. O projeto está sendo finalizado e deve ser apresentado até o fim deste ano.
Os fazendeiros que estavam na reserva mantiveram a produção de arroz no Estado, a maioria em terras arrendadas. Só um optou por investir fora de Roraima, Paulo Cesar Quartiero, líder dos produtores rurais da Raposa Serra do Sol e candidato a deputado federal pelo DEM. Quartiero produziu na Guiana por seis meses, mas preferiu a Ilha do Marajó, no Pará, e hoje tem mais terras do que possuía em Roraima: de 9 mil hectares foi para uma propriedade de 12 mil hectares. Lá ele tem 3 mil cabeças de gado, 1 mil búfalos e 900 cavalos. As reclamações dos produtores rurais são inúmeras. Entre elas, dizem que não foram reassentados pelo governo federal, nem receberam indenização condizente com as fazendas que deixaram.
Assim que acabou o prazo para saída dos produtores da área, os indígenas compuseram uma federação para partilhar as fazendas. Participaram não só os índios ligados ao Conselho Indígena de Roraima, mas também aqueles vinculados à Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiur), que militaram junto aos fazendeiros e queriam a demarcação em ilhas. "A demarcação foi um erro e não queríamos que os agricultores saíssem da área", diz Silvio da Silva, presidente da Sodiur. "Mas agora já passou. Minimizamos as brigas. O que iria sobrar para nós? Matar ou morrer. Ninguém quer viver de briga", explica Silva sobre a pacificação entre os indígenas.
Nas imensas fazendas em que a monocultura de arroz predominava hoje só restam escombros e pequenas plantações. Na fazenda Canadá, que era de Genor Luis Faccio, a casa em que ficavam os funcionários, o depósito, o curral e o hangar foram destruídas. "É um cenário de destruição. Parecia que tinha morrido um monte de gente", lembra Cristovão Galvão Barbosa, tuxaua (líder) da Comunidade do Barro. Ao lado de um curral destruído, os índios fizeram outro, para o gado deles. Em outra fazenda próxima, há uma casa de taipa e plantações de milho, banana e macaxeira ocupando parte do que era a Fazenda Guanabara, também de Faccio. É um exemplo das plantações em que foram divididas as terras dos arrozeiros.
O tuxaua Gonçalo comemora: "Antes alguns fazendeiros não nos deixavam caçar, pescar nem produzir nas nossas terras. Tínhamos que fazer escondido. Eles foram colocando parente contra parente", diz. Os desafios, no entanto, são enormes, ressalta. Os indígenas perderam boa parte da produção com períodos de seca e com o de chuva, que marcam o verão e o inverno. "A questão da terra foi resolvida. Nossa preocupação agora é com o trabalho".
Muitos índios que trabalhavam nas fazenda ficaram desempregados. Nas comunidades da Raposa Serra do Sol a maioria das famílias participa de programas de transferência de renda dos governos federal e estadual, como o Bolsa Família e o Vale Solidário. "Houve uma redução drástica dos conflitos na reserva. O que falta hoje é um projeto de melhoria da qualidade de vida", comenta o procurador Rodrigo Timóteo da Costa e Silva, da Procuradoria da República em Roraima. Outro problema destacado pelas comunidades é o avanço do alcoolismo.
O governo estadual nega que tenha deixado de cuidar dos indígenas. A Funai, por meio do coordenador no Estado, Gonçalo Teixeira, reconhece que há graves problemas na saúde e na educação, mas informa que tem cuidado da reserva.
Fora da reserva, os produtores reclamam até do nome do processo de retirada dos não indígenas da área, chamado de desintrusão. "Não sou intrusa, não sou grileira. Compramos e pagamos por nossa terra", reclama Regina Barilli. "O governo não cumpriu sua parte. Não nos reassentou e pagou só pelas benfeitorias, não pela terra", diz. "É o correto. Não é um processo de desapropriação", contesta o procurador Rodrigo Timóteo da Costa e Silva. A Funai diz que pagou indenização aos arrozeiros em depósito judicial. A briga pelo valor recebido está na Justiça.
As multas do Ibama aos fazendeiros foram milionárias e referem-se à degradação das terras, que são de proteção ambiental. A maioria dos arrozeiros recorreu à Justiça para não pagá-las. "O governo nos multou para justificar o que fez. Não cumpriram nada do que prometeram e ainda nos tratam como invasores de terra", diz Ivalci Centenário.
O preço do arroz não se alterou em Roraima, nem o impacto sobre o PIB foi significativo. Segundo o secretário de Planejamento, Haroldo Amora, a produção de arroz correspondia a 2% do PIB e agora é de 1,2%. A leitura do governo estadual é que a expulsão dos arrozeiros afastou investidores. "O que nos restou foi a insegurança jurídica", resume Amora.
Entrevista:O Estado inteligente
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