O GLOBO - 21/08/10
A infantilização do eleitorado brasileiro denunciada pela candidata do Partido Verde, Marina Silva, é um dos sustentáculos da alta popularidade do presidente Lula. E a campanha eleitoral vai se desenrolando de acordo com os planos desenhados por ele à imagem e semelhança do seu governo, praticando o que talvez seja o maior mal que esteja fazendo ao país: a esterilização da política.
O controle dos partidos através da distribuição de cargos e de métodos mais radicais como o mensalão neutraliza a ação congressual, permitindo a formação de uma aliança política tão heterogênea quanto amorfa, com partidos que em comum têm apenas o apetite pelos benefícios que possam obter apoiando o governo da ocasião.
A quase unanimidade a favor se deve também ao assistencialismo e à cooptação dos “movimentos sociais”, de um lado, e de outro a uma política econômica que aumenta os gastos com juros, Previdência e programas assistenciais.
Uma frente que tem, num extremo, o setor financeiro e, no outro, os mais pobres, numa estranha aliança dos rentistas do Bolsa Família com os rentistas financeiros.
O pragmatismo que rege essa maneira de fazer política fez com que o PT engolisse a candidata oficial, tirada da cartola do ilusionista Lula e literalmente maquiada pela equipe de marqueteiros, que vende ao eleitorado uma persona política tão falsa quanto a favela cenográfica do programa de estreia do candidato do PSDB.
A ex-guerrilheira, durona e de trato difícil, transformouse em tempo real numa senhora simpática que quer se tornar “a mãe” do Brasil.
O governo Lula vem acelerando sua transformação, neste segundo mandato, na direção de um Estado nacionalista, populista e patrimonialista, dependente cada vez mais da vontade do líder carismático, que não aceita os limites da lei, muito menos críticas. E se considera “o pai” do “seu” povo.
A autoestima exagerada provoca sentimento de onipotência que faz o seu possuidor acreditar estar acima das regras que o constrangem.
Na política, pode produzir ditadores ou, no nosso caso, uma versão pós-moderna do caudilhismo latino-americano, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso definiu como um “subperonismo lulista”.
Essa geleia geral que hoje apoia a candidatura oficial pode ter o mesmo destino do peronismo argentino na era pós-Lula que se avizinha, com diversos grupos disputando o espólio político do lulismo.
E Lula, fora do governo, querendo controlar os cordéis de seu fantoche.
Ao mesmo tempo em que aprofunda suas críticas aos órgãos fiscalizadores do Estado, como o Ibama, o Tribunal de Contas da União (TCU) ou até mesmo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tentando constrangê-los, o presidente Lula insiste na tentativa de neutralizar os veículos da grande imprensa, no pressuposto de que, com sua imensa popularidade, pode controlar a opinião pública.
Não é suficiente uma nota oficial para garantir a liberdade de expressão, quando há tentativas concretas, desde o início do governo, de “democratizar” os meios de informação, uma ideia recorrente que vem sendo derrotada desde que primeiramente foi oferecida a debate, com a proposta de criação de um Conselho Nacional de Jornalismo, que fiscalizaria os jornalistas para evitar “desvios éticos”.
Ela ressuscitou com a aprovação, na Conferência Nacional da Comunicação (Confecon), de um Observatório Nacional de Mídia e Direitos Humanos para monitorar a “mídia” e é similar à proposta contida no Programa Nacional de Direitos Humanos de punir os órgãos de comunicação que transgredirem normas a serem ditadas por um conselho governamental.
A questão é que, quando o governo fala em democracia, não está se referindo aos regimes em vigor no mundo ocidental, mas aos regimes bolivarianos gerados a partir do autoritarismo chavista na Venezuela, onde Lula acha que há “democracia até demais”.
Não é simples coincidência que tanto lá quanto na Argentina dos Kirchner os meios de comunicação são perseguidos ou coagidos com base em legislações nascidas de poderes cada vez menos democráticos.
E também não é mera coincidência que esses regimes esquerdistas da América do Sul tenham sua gênese no Foro de São Paulo, uma reunião da esquerda da América Latina que Lula e Fidel Castro organizaram em 1990 para o estabelecimento de uma estratégia comum, na definição do próprio Lula em discurso.
O problema é que o Foro de São Paulo abrigava na sua fundação não apenas partidos políticos de vários matizes da esquerda, mas também organizações guerrilheiras como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs) ou a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (UNRG), consideradas terroristas, acusadas de tráfico de drogas e outras atividades criminosas.
Negar a relação do PT com as Farcs é imaginar que não existam registros confirmando, como uma entrevista de Raul Reys, o número dois das Farcs que morreu recentemente em confronto com o exército da Colômbia, contando como conheceu Lula num desses encontros.
As Farcs classificaram certa vez em nota oficial o Foro de São Paulo como “uma trincheira onde podemos encontrar os revolucionários de diferentes tendências, e diferentes manifestações de luta e de partidos (...)”.
A continuidade dessa política de aparelhamento do Estado é o que está em jogo nestas eleições, e é por isso que o presidente Lula está tão empenhado em vencêlas, e não apenas elegendo sua candidata à Presidência da República.
A estratégia de tentar influenciar a eleição do Congresso, sobretudo a do Senado, tem por trás o desejo de abrir caminho para aprovar legislação que aumente o controle do governo sobre o Estado brasileiro e, eventualmente, sobre a sociedade, através da “democracia direta”, à base de plebiscitos.
(Continua amanhã)
Entrevista:O Estado inteligente
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