O GLOBO - 20/08/10
O presidente Lula se despedindo da Presidência, no programa eleitoral de Dilma Rousseff, com a música “entrego em suas mãos o meu povo” me lembrou o pior Brasil. O Brasil dos donatários, das capitanias hereditárias. Como se não fosse suficiente, ainda há o discurso que infantiliza o povo brasileiro com essa história de pai e mãe do povo.
Desde “Coronelismo, enxada e voto”, de Victor Nunes Leal, o Brasil conhece bem esse seu pior lado. O do patrimonialismo brasileiro, do qual nasceram outros defeitos: o populismo, o paternalismo, o clientelismo. Com a manipulação das massas, os donatários do Brasil mantêm o poder e o entregam aos seus herdeiros.
Além do “deixo em suas mãos”, há ainda a ameaça continuísta implícita: “Mas só deixo porque sei que vais continuar o que eu fiz.” Como se Lula pudesse decidir não passar a Presidência à pessoa que for eleita este ano.
Ninguém duvida que apelos emocionais funcionam em campanha eleitoral. Mas não garantem eleição. Difícil esquecer até hoje o contagiante “Lula lá, nasce uma estrela, Lula lá”. E ele perdeu aquela eleição. São muitas as razões do voto e a história eleitoral brasileira é curta demais para que sejam traçadas leis gerais.
Mas espera-se que ela não se explique pelo retrocesso, por essa visita ao passado.
A economia é decisiva na maioria das eleições, mas nem sempre. A economia americana estava num dos seus melhores momentos ao final do governo Bill Clinton e mesmo assim Al Gore perdeu. É bem verdade que Al Gore quis distância de Clinton por causa do escândalo Monica Levinsky.
Se por acaso o então presidente democrata fizesse uma campanha paternalista, cantando que entregava o povo americano nas mãos de Gore — como se fosse sua propriedade — certamente causaria rejeição ainda maior. Lá, eles não acham que eleitores passam de mão em mão como uma massa sem vontade própria. Nem mesmo ocorreria a um presidente decidir pelo partido quem deve concorrer à sua sucessão, porque existe o saudável ritual das primárias em que os candidatos a candidatos enfrentam o desafio de convencer seus próprios militantes. Aqui, nem governo nem oposição escolhem postulantes de forma transparente.
O Brasil está crescendo forte, a inflação está em queda — foi zero em julho — o crédito se expandindo, o consumo aumentando, o desemprego caindo.
Alguns números são mais elevados por causa da base de comparação, mas há crescimento de fato. A crise de 2008/2009 derrubou a economia e, da perspectiva da campanha governista no Brasil, a recuperação está ocorrendo na hora exata para ajudar o governo na campanha. Todos esses fatores são mais poderosos na definição do voto do que apelos populistas.
É a sensação de conforto econômico que fortalece a campanha da continuidade.
Na onda mistificadora na qual todos no governo estão empenhados, o Ministério da Fazenda divulgou ontem um pretenso estudo para provar que a atuação do BNDES garantiu que o país evitasse uma recessão de 3,2% no ano passado e sustentou 4 pontos percentuais do crescimento deste ano.
A História econômica recente do Brasil mostra que o crescimento do PIB tem duas características: não sustenta taxas altas por muito tempo; não tem grandes quedas. No ano passado, vários países do mundo tiveram quedas grandes do PIB como os 7% da Rússia e do México. O Brasil ficou no -0,2%. Pela visão do ministro Guido Mantega, foi a ação do BNDES.
Mas na crise da Ásia todos os países que tiveram colapsos cambiais enfrentaram recessões enormes: Coréia, -7%; Indonésia, -17%. O Brasil não teve resultado negativo. E não teve esse jorrar de dinheiro do Tesouro para as empresas brasileiras através do BNDES. Segundo Mantega, esses empréstimos subsidiados com dinheiro do Tesouro garantiram 7% de crescimento. Esse número é tão científico quanto o ocultismo.
Ninguém discute a importância do BNDES na economia brasileira, é claro que ele é importante. O problema são os desvios que reforçam o patrimonialismo: a ideia de que o Tesouro pode ser apropriado por alguns. Reduzir o custo de capital, incentivar empresas, estimular a economia o banco sempre fez. Só nos seus piores momentos, como na época dos militares no poder nos anos 1970, escolheu donatários do dinheiro público, concentrou recursos nessa proporção, transferiu impostos para alguns poucos como está fazendo agora.
É por isso que os grandes empresários brasileiros estão tão contentes e querem mais do mesmo. O presidente da Fiesp, Benjamin Steinbruch, na série de ideias obsoletas que exibiu na entrevista que concedeu esta semana ao “Valor Econômico”, disse que quer não um, mas três BNDESs.
Pode-se imaginar que está sendo sincero. Pediu que o governo “feche o país por um tempo.” Pode-se imaginar por quê. Com a economia fechada, funciona melhor o sistema das capitanias hereditárias, do mercado interno entregue como donataria para alguns proprietários. Há 20 anos o Brasil começou a abrir a economia, por isso já se pensava, a esta altura, que ninguém teria mais a coragem de fazer um pedido como esse. A crise de 2008/2009 e as eleições de 2010 viraram uma espécie de licença para propor qualquer velharia: dos subsídios ao fechamento do país. A campanha governista nas eleições está fortalecendo a ideia de que o país não tem um líder, nem um presidente; tem um dono.
Um donatário.
Entrevista:O Estado inteligente
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