O Estado de S. Paulo - 23/08/2010
Ao longo dos últimos meses as autoridades, ao rejeitarem a tese de que a política econômica do governo Lula seria uma continuação daquela adotada nos anos FHC, têm repetido a tese de que, em contraste com o que teria sido a marca do governo anterior, a administração atual se caracterizaria pelos projetos de inclusão social e pela expansão do mercado interno e que essa característica estaria na base dos resultados inequivocamente positivos alcançados pelo País nos últimos anos em matéria de crescimento e geração de emprego. Sem entrar no mérito da questão acerca de em que medida as diretrizes adotadas a partir de 2003 configuram ou não um rompimento com as que vigoravam até então, cabe refletir sobre até que ponto aquilo que foi válido até agora poderá se manter inalterado nos próximos anos.
Vale lembrar ao leitor que o que no jargão dos economistas é conhecido como o Produto Interno Bruto (PIB) nada mais é do que a soma do consumo (C) com a formação bruta de capital, equivalente ao investimento (I), se deixarmos de lado a variação de estoques; e com o resultado líquido (R) das transações reais com o exterior, ou seja, a diferença entre as exportações e importações de bens e serviços.
Em termos absolutos é possível que, no contexto de uma economia em expansão, todas as variáveis cresçam ao mesmo tempo, elevando tanto o consumo como o investimento e o resultado das exportações deduzido do valor das importações. Mas, em termos relativos, aumentar todas as frações do valor do produto ao mesmo tempo é uma impossibilidade matemática. Em outras palavras, nessa identidade das contas nacionais (PIB = C + I + R), o peso relativo dos componentes à direita do sinal de igualdade não pode aumentar em todos os casos, pois a soma das partes não pode ser maior que o todo: na composição da economia, se a parcela representada pelo peso de uma variável em relação ao total tiver de aumentar, outra deverá diminuir.
Eis onde reside o dilema posto ao País no futuro próximo. Note-se que todo o discurso de exaltação do momento favorável que o País vive é de que "enfim a população está podendo consumir", dando a entender que o consumo continuará a ser devidamente "turbinado", pelo fato de isso ser parte integrante do DNA do modelo vigente (nos últimos cinco anos, enquanto o PIB teve um aumento acumulado de 19%, o consumo familiar se expandiu a uma taxa bem maior, de 30%). Ao mesmo tempo, 10 entre 10 economistas defendem o aumento da taxa de investimento. Finalmente, os riscos de que o País conserve a atual trajetória de deterioração das contas externas saltam aos olhos, e é de bom tom reverter essa trajetória, ou seja, aumentar o resultado, expresso como fração do PIB, da diferença entre exportações e importações (ou ao menos evitar que ela continue tendo uma trajetória de piora recente).
O conflito entre objetivos diferentes se resolveu de maneira diversa em diferentes situações da história do País. Por exemplo, a taxa de investimento, que em 1966 tinha atingido um mínimo de 16% do PIB, chegou a 24% do PIB no final da década de 70, ao custo de que o saldo de transações reais com o exterior, que era positivo em 1% do PIB em 1966, se tornasse negativo em 2% do PIB quase 15 anos depois, e de que o consumo total caísse de 81% para 79% do PIB nesse período. Já na crise dos anos 80 o País se ajustou, com o citado saldo externo passando de negativo em 1% do PIB, em 1982, para positivo em 6% do PIB, em 1984, mas com uma queda dramática do investimento de 23% para 19% do PIB no período, acompanhada ainda de uma perda de peso do consumo.
O problema que se coloca no momento, e na perspectiva dos próximos anos, não é difícil de entender: não é possível conseguir tudo ao mesmo tempo. Pode-se aumentar o consumo a taxas superiores ao PIB, como nos últimos anos, mas reduzindo o peso do investimento ou ao custo de uma piora das contas externas. Da mesma forma, faz sentido ampliar a taxa de investimento, mas neste caso o consumo terá de diminuir seu peso no PIB ou as importações crescerem mais que as exportações. Finalmente, é razoável melhorar o resultado do setor externo, mas só se a soma de consumo e investimento crescer menos. O que não dá para conseguir é que todas as rubricas aumentem seu peso em relação ao PIB.
A questão é como fazer para que o País eleve a taxa de investimento até os almejados 22% ou 23% do PIB. Nesse sentido, é útil olhar para o que ocorreu em outras duas ocasiões recentes em que o País passou por momentos de aumento do investimento: em 2000 o PIB cresceu 4,3%, a taxa de investimento aumentou 1,1% do PIB e a poupança doméstica se elevou em 1,9% do PIB, graças a um crescimento do consumo de 3%, inferior ao do PIB. Já em 2004, o PIB cresceu 5,7%, a taxa de investimento do País elevou-se em 0,8% do PIB e a poupança doméstica aumentou 2,5% do PIB, em virtude do consumo total ter crescido 3,9%, também abaixo do PIB. Para que o investimento aumente, sem pôr em risco as conquistas alcançadas na atual década no setor externo, é preciso implementar uma mudança no padrão de crescimento, agora com uma expansão mais moderada do consumo. Ao formular planos para os próximos anos, é importante levar em conta essa perspectiva.
ECONOMISTA, É AUTOR DE "REFORMA DA PREVIDÊNCIA" (ED. CAMPUS)
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