Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 29, 2010

DENTADURA, SAPATO OU EMPREGO João Ubaldo Ribeiro

O Estado de S.Paulo - 29/08/10

A grande festa da democracia já está rolando, embora a animação não
pareça das mais intensas. Pelo menos para mim, nos cada vez mais
escassos momentos em que consigo assistir ao horário eleitoral sem
dormir, lembra esses circuitos de Fórmula Um onde as ultrapassagens
são quase impossíveis e a corrida se define logo depois das primeiras
três ou quatro voltas. Espero não violar nenhuma lei eleitoral, ao
endossar a opinião de praticamente todo mundo com quem converso, ou
seja, o dr. Serra já perdeu, anda com jeito de perdedor e às vezes a
campanha dele dá a mesma impressão que a de um time de futebol em
campo apenas para cumprir tabela. Observando-a em andamento, a gente
às vezes precisa até de um pequeno esforço, para recordar que se trata
de um candidato da oposição.

Ouso ainda achar que a campanha dele partiu de um pressuposto
exemplarmente burro. Não sei se aqueles que a conceberam se basearam
numa analogia com o que, segundo me contam, fazem os lutadores de
jiu-jítsu, os quais usam a força do adversário contra esse mesmo
adversário. Se não foi isso, ficou perto. Já que não se pode fazer
nada contra a popularidade do presidente Lula, vamos então usar a
força dessa popularidade contra sua candidata.
Ideia de Jericó. Não me refiro à cidade bíblica cujas muralhas ruíram
por obra das trombetas de Josué, refiro-me à elegante pronúncia de
Zezito Cabecinha, lá de Itaparica, que não conhecia a palavra "jerico"
(só conhecia "jegue") e a leu "jericó" na primeira vez em que a viu,
de maneira que até hoje designa como ideia de Jericó qualquer juízo
que lhe pareça pouco inteligente. Perfeita ideia de Jericó, essa
corporificada na campanha "oposicionista". Bota lá a imagem do
presidente Lula bem visível nos meios de comunicação de massa, bota o
nome dele nos jingles. Para mim, isso é mais ou menos a mesma coisa
que a Pepsi-Cola fazer propaganda estampando a marca da Coca-Cola em
todos os seus comerciais - e com uma voz off no final dizendo
"Pepsi-Cola: tão boa quanto Coca-Cola!" Ou, talvez, um pouco mais no
espírito da atual campanha da alegada oposição, um ator simpático
falando para o telespectador: "Agora que você se deliciou com sua
Coca, por que não experimentar uma Pepsi?" É em algo assim que essa
campanha resulta. Eu pensava que usar uma marca e uma imagem era coisa
muito bem entendida por publicitários, marqueteiros e outros
cientistas sociais, mas, pelo visto, não é. Ou então o burro sou eu,
deve ser. De qualquer maneira, acho que, a esta altura, saiu tudo pela
culatra e a força do adversário não tem funcionado contra ele, mas
provavelmente a favor, como parecem corroborar as pesquisas
eleitorais.
E, lá no meu sertão, como andará a festa? O brasileiro não sabe votar,
avaliação todos os dias repetida, até mesmo num texto falsamente
atribuído a mim, que circula na internet e que já desisti de
desmentir. Se isso se refere aos brasileiros pobres, miseráveis ou
esquecidos nos cafundós, não tenho tanta certeza de que representa a
verdade. Que quer dizer "votar certo"? O eleitor vota certo, digamos,
quando vota no candidato que representa seus legítimos interesses e
aspirações. Nesse caso, quando vende seu voto, ou o troca por uma
dentadura, um par de sapatos ou, melhor ainda, um emprego, o tal
eleitor "inconsciente" não estará votando certo? Em muitos casos,
somente na próxima eleição é que ele vai ver esse pessoal que ora
compra seu voto. A eleição é uma ocasião preciosa e rara que se
oferece a ele. Durante a temporada eleitoral, ele é cumprimentado, é
escutado e elogiado, vira até gente e recebe alguma coisa de um mundo
que o ignora e abandona o resto do tempo. Que outra serventia tem o
voto para ele? Como vão caber no horizonte dele as questões discutidas
pelos "esclarecidos"? Que real diferença, para ele, existe entre um
deputado e outro, a não ser que um recompensa o voto com uma graninha,
um sapatinho, uma dentadurazinha, uma colocaçãozinha - e o outro nem
isso? E, como nem um nem outro jamais fizeram nada para beneficiá-lo,
estará votando errado, ao ser recompensado pelo seu voto da única
forma que a experiência o autoriza a ver como viável?
E os que votam "certo"? Aqui de novo há uma escala. Quem furta galinha
é ladrão; quem furta muitos milhões é um financista vitimado pelas
vicissitudes do mercado; quem furta bilhões é um grande homem. Matou
um, é assassino; matou milhões, é grande líder. Da mesma forma, quem
negocia seu voto por um emprego vota errado. Em compensação, votam
certo os que negociam seus votos por uma legião de empregos, como
fazem os políticos profissionais que já hoje nem se aguentam, tamanha
a sede de ir ao pote assim que o novo governo tomar posse, dando-nos
volta e meia a vontade de pedir calma, que vai dar para todo mundo,
embora, levando-se em conta a voracidade e a eficiência com que
saqueiam e dissipam, talvez o seguro seja estar entre os primeiros a
abocanhar, pois de repente a fonte pode secar.
Saber votar, por outro lado, consola pouco os que acham que sabem.
Todos os objetivos de todos os candidatos (espero também não ter
violado nenhuma lei eleitoral, por haver falado acima somente nos
candidatos mais cotados nas pesquisas - temo, aliás, que no futuro, a
julgar pelas tendências correntes, isto de fato venha a constituir
crime eleitoral e até os livros de História do Brasil sejam obrigados
a dedicar espaço rigorosamente igual a todos os presidentes da
República) são sempre os mesmos. Construir um Brasil mais justo, mais
igualitário, com cidadania. E porque tal, porque vira, etc. e tal. É
tudo a mesma coisa, tudo fácil de dizer. E assim, mesmo nós, os que
achamos que sabemos votar, enfrentamos dificuldades de escolha. Não
estou precisando de dentadura no momento, mas um parzinho de sapatos
talvez caísse bem.

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