Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 08, 2009

O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow

Por obra do acaso

Um físico explica por que as pessoas têm tanta dificuldade em compreender
e aceitar o aleatório - apesar de ele controlar uma boa parte de suas vidas


Jerônimo Teixeira

Tara Moore/Getty Images

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Escapando à sequência de faixas nos discos e CDs tradicionais, o iPod Shuffle oferece ao usuário a oportunidade de ouvir sua música em ordem aleatória. Em suas primeiras versões, duas canções do mesmo artista às vezes eram tocadas uma depois da outra, e acontecia até de a mesma música ser tocada duas vezes. Repetições desse tipo são de esperar em uma série determinada pelo acaso - da mesma forma como não é impossível que o mesmo número apareça em dois lances de dados consecutivos. Os usuários do iPod, no entanto, reclamaram. Sentiram que suas músicas não eram "embaralhadas" adequadamente. A Apple, então, reprogramou o aparelho para eliminar repetições. No dizer de Steve Jobs, presidente da companhia, a função de embaralhamento passou a ser "menos aleatória, para parecer mais aleatória". O episódio ilustra bem uma incômoda particularidade do acaso: as pessoas dificilmente sabem reconhecê-lo. A mente humana foi configurada para encontrar ordem onde ela não existe - e frequentemente toma péssimas decisões com base nesses padrões imaginários. O Andar do Bêbado (tradução de Diego Alfaro; Jorge Zahar; 264 páginas; 39 reais), do físico americano Leonard Mlodinow - parceiro de Stephen Hawking no livro Uma Nova História do Tempo -, oferece uma didática e saborosa introdução aos mecanismos do acaso - nos quais você, leitor, está inapelavelmente enredado.

Não será por acaso que um físico se dedique a escrever sobre o acaso: essa tornou-se uma linha de estudos forte na física do século XX. Um dos trabalhos pioneiros de Albert Einstein, de 1905, foi sobre as oscilações aleatórias de partículas sólidas em suspensão num fluido, o chamado movimento browniano, causado pelo movimento caótico das moléculas do líquido. O próprio Einstein, porém, não aceitou as conclusões mais radicais da mecânica quântica sobre a indeterminação dos movimentos de partículas subatômicas - daí sua famosa frase "Deus não joga dados". A física, porém, aparece apenas marginalmente no livro de Mlodinow - ele mesmo um tanto errático na carreira científica: depois de um período em universidades prestigiosas como a Caltech, em meados dos anos 80 ele tentou a sorte como roteirista em Hollywood (trabalhou na sérieJornada nas Estrelas: a Nova Geração, entre outras) e, mais tarde, como programador de videogames. Hoje, está de volta à Caltech.

Stephanie Diani/Aurora Photos
FALSO POSITIVO 
Leonard Mlodinow: um médico disse que ele teria 999 chances em 1 000 de ter aids. O físico examinou os dados e concluiu que, na verdade, havia apenas uma chance em onze de ele estar infectado pelo HIV


A linha mestra do livro é a matemática, especialmente a evolução dos cálculos de probabilidade, um dos instrumentos mais poderosos que o gênio humano já inventou para iluminar o acaso - e um dos ramos da matemática que mais se mostram inacessíveis ao entendimento intuitivo. Mlodinow ilustra a deficiência com um caso que ele mesmo viveu: em 1989, seu médico lhe informou que ele tinha aids - ou, mais exatamente, que ele tinha 999 chances em 1 000 de contrair a doença, pois esse seria o nível de exatidão do exame de sangue. Na verdade, se considerasse o fato de que seu paciente não se incluía em nenhum grupo de risco, o médico teria chegado a resultados muito diferentes: nesses casos, apenas um de cada onze resultados positivos seria de pessoa realmente infectada pelo HIV. Mlodinow, de fato, fora vítima de um falso positivo.

Jogos de azar, com seus resultados perfeitamente aleatórios, são um campo fértil para o estudo do acaso e da probabilidade. Um dos pioneiros nesse campo da matemática foi um italiano do século XVI chamado Gerolamo Cardano, jogador compulsivo que deixou uma obra clássica, O Livro dos Jogos de Azar. Até matemáticos inteligentes - mas com pouca experiência na jogatina - tropeçam nas probabilidades envolvidas em uma aposta. Jean Le Rond D'Alembert, matemático francês do século XVIII, examinou as chances de dar cara quando duas moedas são lançadas. D'Alembert especulou que haveria três possibilidades - zero, uma ou duas caras, cada uma delas com chances iguais de um terço. Estava errado, como explicaria Cardano. Na verdade, é preciso considerar a se-quência de resultados com ambas as moedas. As possibilidades não são três, mas quatro: cara-coroa, coroa-cara, cara-cara e coroa-coroa. Há, portanto, 50% de chance de uma cara, 25% de duas e 25% de nenhuma.

O acaso absoluto é uma forma de perfeição. Programas de computador complexos são planejados para criar sequências numéricas puramente aleatórias. Mesmo um dado não viciado pode apresentar minúsculas irregularidades que favoreçam um ou outro número (ainda que sejam necessárias dezenas de milhares de lances do dado para que se descubra que números são esses). Um dos casos mais curiosos narrados por Mlodinow é o de Joseph Jagger, um engenheiro inglês que, em 1873, analisou as roletas de um cassino de Monte Carlo ao longo de seis dias em busca de irregularidades. Descobriu que uma das roletas estava, de fato, privilegiando nove números - e ficou rico apostando neles. Na verdade, foi um lance de sorte: a análise matemática mostra que a regularidade que Jagger julgou ter visto em seis dias de observação era tênue. Os nove números poderiam ter surgido por obra do acaso.

A ilusão de que temos o conhecimento necessário para controlar as variáveis mais doidas do mundo cotidiano - como os números de uma roleta - provoca equívocos nas mais diversas atividades. Em todos os esportes profissionais, o técnico de um time costuma ser responsabilizado quando amarga várias derrotas sucessivas. É comum que ele seja demitido e substituído por outro. Economistas já fizeram análises rigorosas dos resultados obtidos por equipes que mudaram de técnico e chegaram a uma conclusão que surpreende torcedores e cartolas: a mudança não faz diferença, porque, com perdão do trocadilho, há muitas outras coisas em jogo. Hollywood também nutre uma crença insensata nos poderes divinatórios de seus executivos para produzir estouros de bilheteria. Mlodinow lembra o caso de Sherry Lansing, que presidiu o estúdio Paramount ao tempo em que este lançou sucessos gigantescos como Titanic Coração Valente - mas acabou demitida em 2004, depois de uns poucos anos de maus resultados. Os filmes que Sherry deixou no forno ao sair, como Guerra dos Mundos, voltaram a dar lucro. A preferência do espectador por este ou aquele filme (ou livro, ou novela, ou candidato político) está sujeita a tantos fatores arbitrários que ninguém sabe de fato prevê-la, argumenta Mlodinow.

O Andar do Bêbado foi publicado nos Estados Unidos em meados de 2008, pouco antes de a crise econômica mostrar suas garras. Não haveria momento mais oportuno. Os fatos confirmaram a mensagem básica de Mlodinow: os ganhos de hoje não permitem prever mais riqueza amanhã. Um comentarista esportivo americano chamado Leonard Koppett anunciou, em 1978, um método infalível para prever, no início de cada ano, se o mercado de ações cairia ou subiria: baseava-se no vencedor do campeonato de futebol americano do ano anterior. Absurdo, sem dúvida - mas, nos dezenove anos seguintes, Koppett acertou a aposta dezoito vezes. A leitura inconsequente desses fatos sugeriria apostar em qualquer coisa - ações, dados, moedas, cavalos -, pois tudo depende apenas da sorte. A moral do livro de Mlodinow é outra. Fracasso ou sucesso estão sujeitos a forças que nenhum sistema ou indivíduo pode controlar plenamente. A consciência do acaso pode ser libertadora. 


LIVROS  

Trecho de O Andar do Bêbado
de Leonard Mlodinow

1. Olhando pela lente da aleatoriedade

Lembro-me de, quando adolescente, ver as chamas amarelas das velas do sabá dançando aleatoriamente sobre os cilindros brancos de parafina que as alimentavam. Eu era jovem demais para enxergar algum romantismo na luz de velas, mas ainda assim ela me parecia mágica - em virtude das imagens tremulantes criadas pelo fogo. Moviam-se e se transformavam, cresciam e desvaneciam sem nenhuma aparente causa ou propósito. Certamente, eu acreditava, devia haver um motivo razoável para o comportamento da chama, algum padrão que os cientistas pudessem prever e explicar com suas equações matemáticas. "A vida não é assim", disse meu pai. "Às vezes ocorrem coisas que não podem ser previstas." Ele me contou de quando, em Buchenwald, o campo de concentração nazista em que fi cou preso, já quase morrendo de fome, roubou um pão da padaria. O padeiro fez com que a Gestapo reunisse todos os que poderiam ter cometido o crime e alinhasse os suspeitos. "Quem roubou o pão?", perguntou o padeiro. Como ninguém respondeu, ele disse aos guardas que fuzilassem os suspeitos um a um, até que estivessem todos mortos ou que alguém confessasse. Meu pai deu um passo à frente para poupar os outros. Ele não tentou se pintar em tons heroicos, disse-me apenas que fez aquilo porque, de qualquer maneira, já esperava ser fuzilado. Em vez de mandar fuzilá-lo, porém, o padeiro deu a ele um bom emprego como seu assistente. "Um lance de sorte", disse meu pai. "Não teve nada a ver com você, mas se o desfecho fosse diferente, você nunca teria nascido." Nesse momento me dei conta de que devo agradecer a Hitler pela minha existência, pois os alemães haviam matado a mulher de meu pai e seus dois filhos pequenos, apagando assim sua vida anterior. Dessa forma, se não fosse pela guerra, meu pai nunca teria emigrado para Nova York, nunca teria conhecido minha mãe, também refugiada, e nunca teria gerado a mim e aos meus dois irmãos.

Meu pai raramente falava da guerra. Na época eu não me dava conta, mas anos depois percebi que, sempre que ele partilhava conosco suas terríveis experiências, não o fazia apenas para que eu as conhecesse, e sim porque queria transmitir uma lição maior sobre a vida. A guerra é uma circunstância extrema, mas o papel do acaso em nossas vidas não é exclusividade dos extremos. O desenho de nossas vidas, como a chama da vela, é continuamente conduzido em novas direções por diversos eventos aleatórios que, junta- mente com nossas reações a eles, determinam nosso destino. Como resultado, a vida é ao mesmo tempo difícil de prever e difícil de interpretar. Da mesma maneira como, diante de um teste de Rorschach, você poderia ver o rosto da Madonna e eu um ornitorrinco, podemos ler de diversas maneiras os dados que encontramos na economia, no direito, na medicina, nos esportes, na mídia ou no boletim de um filho na terceira série do colégio. Ainda assim, interpretar o papel do acaso num acontecimento não é como interpretar um teste de Rorschach; há maneiras certas e erradas de fazê-lo.

Frequentemente empregamos processos intuitivos ao fazermos avaliações e escolhas em situações de incerteza. Não há dúvida de que tais processos nos deram uma vantagem evolutiva quando tivemos que decidir se um tigre-dentes-de-sabre estava sorrindo por estar gordo e feliz ou porque estava faminto e nos via como sua próxima refeição. Mas o mundo moderno tem um equilíbrio diferente, e hoje tais processos intuitivos têm suas desvantagens. Quando utilizamos nossos modos habituais de pensar ante os tigres de hoje, podemos ser levados a decisões que se afastam do ideal, e que podem até ser incongruentes. Essa conclusão não é surpresa nenhuma para os que estudam o modo como o cérebro processa a incerteza: muitas pesquisas apontam para uma conexão próxima entre as partes do cérebro que avaliam situações envolvendo o acaso e as que lidam com a característica humana muitas vezes considerada a nossa principal fonte de irracionalidade, as emoções. Imagens de ressonância magnética funcional, por exemplo, mostram que risco e recompensa são avaliados por partes do sistema dopaminérgico, um circuito de recompensa cerebral importante para os processos motivacionais e emocionais.1 Os testes também mostram que as amígdalas cerebelosas - os lóbulos arredondados na superfície anterior do cerebelo -, também ligadas a nosso estado emocional, especialmente ao medo, são ativadas quando tomamos decisões em meio à incerteza.2

Os mecanismos pelos quais as pessoas analisam situações que envolvem o acaso são um produto complexo de fatores evolutivos, da estrutura cerebral, das experiências pessoais, do conhecimento e das emoções. De fato, a resposta humana à incerteza é tão complexa que, por vezes, distintas estruturas cerebrais chegam a conclusões diferentes e aparentemente lutam entre si para determinar qual delas dominará as demais. Por exemplo, se o seu rosto inchar até cinco vezes o tamanho normal em 3 de cada 4 vezes que você comer camarão, o lado "lógico" do seu cérebro, o hemisfério esquerdo, tentará encontrar um padrão. Já o hemisfério direito, "intuitivo", dirá apenas: "Evite camarão." Ao menos essa foi a descoberta feita por pesquisadores em situações experimentais menos dolorosas. O nome do jogo é suposição de probabilidades. Em vez de brincarem com camarões e histamina, os pesquisadores mostram aos participantes do estudo uma série de cartas ou lâmpadas de duas cores, digamos, verde e vermelho. A experiência é organizada de modo que as cores apareçam com diferentes probabilidades, mas sem nenhuma espécie de padrão. Por exemplo, o vermelho poderia aparecer com frequência duas vezes maior que o verde numa sequência como vermelho- vermelho-verde-vermelho-verde-vermelho-vermelho-verde-verdevermelho- vermelho-vermelho, e assim por diante. Depois de observar o experimento por algum tempo, a pessoa deve tentar prever se cada novo item da sequência será vermelho ou verde.

O jogo tem duas estratégias básicas. Uma delas é sempre arriscar na cor percebida como a que ocorre com mais frequência. Essa é a estratégia preferida por ratos e outros animais não humanos. Ao empregarmos essa estratégia, garantimos um certo grau de acertos, mas também aceitamos que nosso desempenho não será melhor que isso. Por exemplo, se o verde surgir em 75% das vezes e decidirmos sempre arriscar no verde, acertaremos em 75% das vezes. A outra estratégia é "ajustar" a nossa proporção de tentativas no verde e no vermelho conforme a proporção de verdes e vermelhos que observamos no passado. Se os verdes e vermelhos surgirem segundo um padrão e conseguirmos desvendar esse padrão, essa estratégia nos permitirá acertar em todas as tentativas. Mas se as cores surgirem aleatoriamente, o melhor que podemos fazer é nos atermos à primeira estratégia. No caso em que o verde aparece aleatoriamente em 75% das vezes, a segunda estratégia levará ao acerto em apenas cerca de 6 vezes de cada 10.

Os seres humanos geralmente tentam descobrir qual é o padrão e, nesse processo, acabamos tendo um desempenho pior que o dos ratos. Há pessoas, porém, com certos tipos de sequelas cerebrais pós-cirúrgicas que impedem os hemisférios direito e esquerdo de se comunicarem um com o outro - uma condição conhecida como cérebro dividido. Se o experimento for realizado com esses pacientes de modo que eles só consigam ver a luz ou a carta colorida com o olho esquerdo e só possam utilizar a mão esquerda para sinalizar suas previsões, apenas o lado direito do cérebro é testado. Mas se for realizado de modo a envolver apenas o olho direito e a mão direita, será um experimento para o lado esquerdo do cérebro. Ao realizarem esses testes, os pesquisadores descobriram que - nos mesmos pacientes - o hemisfério direito sempre arris- cava na cor mais frequente, e o esquerdo sempre tentava adivinhar o padrão.3

A capacidade de tomar decisões e fazer avaliações sábias diante da incerteza é uma habilidade rara. Porém, como qualquer habilidade, pode ser aperfeiçoada com a experiência. Nas páginas que se seguem, examinarei o papel do acaso no mundo que nos cerca, as ideias desenvolvidas ao longo dos séculos para nos ajudar a entender esse papel e os fatores que tantas vezes nos levam pelo caminho errado. O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell escreveu:

Todos começamos com o "realismo ingênuo", isto é, a doutrina de que as coisas são aquilo que parecem ser. Achamos que a grama é verde, que as pedras são duras e que a neve é fria. Mas a física nos assegura que o verdejar da grama, a dureza das pedras e a frieza da neve não são o verdejar da grama, a dureza das pedras e a frieza da neve que conhecemos em nossa experiência própria, e sim algo muito diferente.4

A seguir, olharemos o mundo pela lente da aleatoriedade e veremos que, também em nossas vidas, muitos dos acontecimentos não são exatamente o que parecem ser, e sim algo muito diferente.


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