Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 08, 2009

Iniciantes, de Raymond Carver

Escrito com a tesoura

A reedição dos contos originais do americano Raymond Carver
mostra que seu propalado "minimalismo" foi criação de seu editor


Cristovão Tezza

Bob Adelman/Corbis/Latinstock
HUMANIDADE APAGADA
Raymond Carver: a edição radical de seus contos eliminou sua dimensão afetiva


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Publicada em 1981, Do que Estamos Falando Quando Falamos de Amor, coletânea de dezessete contos do americano Raymond Carver (1938-1988), transformou-o em mestre do minimalismo – a corrente literária que, levando às últimas consequências o caminho aberto por Ernest Hemingway com a técnica enxuta de mais sugerir do que dizer, viria a ter uma legião de admiradores e imitadores. No ideário minimalista, são as lacunas do texto que produzem sentido. O que ninguém sabia é que a obra original de Carver havia sido brutalmente modificada pelo editor Gordon Lish, da prestigiosa editora Knopf, de Nova York. Com um contrato de plenos poderes assinado pelo autor numa mão e uma tesoura na outra, Lish reduziu o livro à metade, modificou finais, substituiu páginas inteiras, trocou nomes de personagens e títulos de contos. É uma tradição editorial que bons editores conversem com o autor sobre a obra a ser publicada, e há inúmeros exemplos de intervenções que melhoraram o livro. Lish, porém, transformou Raymond Carver num outro escritor. O verdadeiro Carver está restaurado na edição integral de seus contos originais, sob o título Iniciantes (tradução de Rubens Figueiredo; Companhia das Letras; 304 páginas; 49 reais).

Publicada nos Estados Unidos em 2008, depois de um minucioso trabalho de restauração dos textos, a edição foi uma iniciativa da poeta Tess Gallagher, última mulher de Carver. Iniciantes revela um escritor bastante diferente. Embora tenha sua dívida com Hemingway, Carver trabalha com outra substância literária. Tecnicamente, é um "criador de atmosferas", não um minimalista. E a sua visão de mundo tem uma sutil dimensão afetiva, um toque de tolerância pela condição humana que a versão decepada de sua obra apaga quase completamente. O melhor exemplo dessa mudança radical é o conto Uma Coisinha Boa, que havia sido reduzido a 20% de seu tamanho original. Na história, uma mulher encomenda um bolo de aniversário para seu filho único, Scotty, que é atropelado e, no dia da festa, está em coma. A mulher e o marido são atormentados por telefonemas do padeiro, cobrando o pagamento do bolo. Na versão do editor, o conto termina de súbito em meio a um dos telefonemas; no texto original, o casal reencontra o padeiro, que, soterrado pela culpa, lhes serve pãezinhos, em uma cena que se transforma numa discreta epifania, distante tanto do sentimentalismo quanto do truque maneirista inventado pelo editor.

Os contos de Iniciantes versam sobre casais infelizes. Carver escrevia basicamente sobre si mesmo. Casou-se aos 19 anos com a namorada, grávida, de 16, com quem teve dois filhos e viveu durante 25 anos um casamento turbulento. Alcoólatra, agredia a mulher com frequência, e teve numerosos casos. Casou-se com Tess Gallagher pouco antes de morrer, vítima de câncer. A crítica vem discutindo muito sobre qual a melhor versão de seus contos (e quase nada sobre a grave violação ética envolvida nessa transformação). O Carver minimalista é um autor datado, que se fez moda pós-moderna. O escritor verdadeiro está nos textos originais.


LIVROS  

Trecho de Iniciantes, de Raymond Carver

Por que não dançam?

Na cozinha, ele serviu mais um drinque e olhou para a mobília do quarto, no jardim da frente. O colchão estava nu e os lençóis, com listras coloridas, arrumados ao lado de dois travesseiros sobre a cômoda. A não ser por isso, as coisas tinham a mesma cara de quando estavam dentro do quarto - a mesinha e a luminária de leitura do seu lado da cama, a mesinha e a luminária de leitura do lado dela da cama. O lado dele, o lado dela. Ele ficou pensando nisso, enquanto bebia devagar o seu uísque. A cômoda estava a pouca distância do pé da cama. Ele havia esvaziado as gavetas e guardado tudo em caixas de papelão naquela manhã, e as caixas estavam na sala. Um aquecedor portátil se encontrava do lado da cômoda. Uma cadeira de vime, com uma almofada decorativa, estava junto ao pé da cama. O material de cozinha, de alumínio amarelado, ocupava uma parte da entrada para a garagem. Uma toalha de musselina amarela, grande demais, um presente, cobria a mesa e pendia dos lados até embaixo. Um vaso com uma samambaia estava sobre a mesa, junto com uma caixa de talheres, também um presente. Um tele visor de modelo grande estava em cima de uma mesinha de café e, a alguns metros disso, um sofá, uma cadeira e uma luminária de chão. Ele tinha puxado uma extensão da casa e tudo estava ligado, as coisas funcionavam. A escrivaninha foi arrastada até a porta da garagem. Alguns utensílios estavam sobre a escrivaninha, junto com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas. Na entrada para a garagem havia também uma caixa com xícaras, copos e pratos, todos embrulhados um a um em jornal. Naquela manhã, ele tinha esvaziado os armários e, a não ser pelas três caixas na sala, tudo estava do lado de fora. De vez em quando, um carro diminuía a velocidade e as pessoas observavam. Mas ninguém parava. E ele pensou que também não pararia.

"Deve ser uma venda feita no jardim, puxa vida", disse a garota para o rapaz.

Aquela garota e o rapaz estavam mobiliando um apartamento pequeno.

"Vamos ver quanto querem pela cama", disse a garota.

"Eu queria saber quanto estão cobrando pela tevê", disse o rapaz.

Entraram com o carro no jardim e pararam na frente da mesa de cozinha.

Saíram do carro e começaram a examinar os objetos. A garota tocou na toalha de musselina. O rapaz ligou a tomada da batedeira e girou o botão para a posição moer. Ela pegou um braseiro. Ele ligou o botão do televisor e fez uns ajustes cuidadosos. Sentou-se no sofá para ver. Acendeu um cigarro, olhou em redor e jogou o fósforo na grama. A garota sentou-se na cama. Tirou os sapatos e se deitou. Podia ver Vênus no céu.

"Venha cá, Jack. Experimente só esta cama. Traga um daqueles travesseiros ali", disse ela.

"Que tal?", perguntou ele.

"Experimente só", disse ela.

Ele olhou ao redor. A casa estava às escuras.

"Estou com uma sensação engraçada", disse ele. "É melhor ver se não tem alguém em casa."

Ela balançou o corpo sobre a cama.

"Primeiro, experimente", disse a garota.

Ele se deitou na cama e colocou o travesseiro embaixo da cabeça.

"Que tal?", perguntou a garota.

"É firme", disse ele.

Ela virou-se de lado e pôs o braço em volta do pescoço dele.

"Me beije", disse ela.

"Vamos levantar", disse ele.

"Me beije. Me beije, meu bem", disse ela.

A garota fechou os olhos. Abraçou o rapaz. Ele não pôde deixar de gostar do toque dos dedos atrevidos da garota.

O rapaz falou:

"Vou ver se tem gente em casa", mas continuou sentado.

O televisor ainda estava ligado. Luzes tinham sido acesas nas casas da rua, tanto para um lado como para o outro. Ele ficou sentado na beirada da cama.

"Não seria engraçado se...", disse a garota, deu uma risadinha e não terminou.

Ele riu. Acendeu a luminária de leitura.

Ela espantou um mosquito com a mão.

Ele se levantou e pôs a camisa para dentro da calça.

"Vou ver se tem alguém em casa", disse. "Não acho que tenha alguém em casa. Mas se tiver vou perguntar quanto querem por estas coisas."

"Qualquer valor que pedirem, você oferece dez dólares a menos", disse ela. "Devem estar no maior sufoco."

Ficou sentada na cama, vendo televisão.

"Você podia aumentar o volume", disse a garota, e deu uma risadinha.

"É uma tevê muito boa", disse ele.

"Pergunte quanto eles querem por ela", disse a garota.

Max veio pela calçada com uma sacola de supermercado. Trazia sanduíches, cerveja e uísque. Havia bebido durante a tarde inteira e agora chegara a um ponto em que a bebida pare- cia começar a deixá-lo sóbrio. Mas havia uns intervalos. Tinha dado um pulo no bar vizinho ao mercado, ouviu uma música no jukebox e, sem ele perceber, o dia escureceu antes que se lembrasse das coisas que estavam no meio do seu jardim.

Viu o carro na entrada e a garota na cama. O televisor estava ligado. Aí viu o rapaz na varanda. Começou a atravessar o jardim.

"Oi", disse para a garota. "Achou a cama, não foi? É legal."

"Oi", disse a garota, e levantou-se. "Estava só experimentando." Deu uma palmadinha na cama. "É uma cama muito boa."

"É uma cama boa", disse Max. "O que vou falar agora?"

Sabia que tinha de falar mais alguma coisa. Baixou a sacola de compras e pegou a cerveja e o uísque.

"A gente pensou que não tinha ninguém aqui", disse o rapaz. "Estamos interessados na cama e talvez no televisor. Talvez na escrivaninha também. Quanto quer pela cama?"

"Estava pensando em cinquenta dólares pela cama", respondeu Max.

"Não aceita quarenta?", perguntou a garota.

"Tudo bem, faço por quarenta", respondeu.

Pegou um copo da caixa, tirou o jornal e abriu a tampa da garrafa de uísque.

"E a tevê?", quis saber o rapaz.

"Vinte e cinco."

"Não pode fazer por vinte?", perguntou a garota.

"Vinte está legal. Posso fazer por vinte", respondeu Max.

A garota olhou para o rapaz.

"Escutem, crianças, não querem tomar um drinque?", perguntou Max. "Os copos estão nesta caixa. Vou me sentar. Vou me sentar no sofá."

Sentou-se no sofá, reclinou-se para trás e olhou bem para os dois.

O rapaz achou dois copos e serviu o uísque.

"Quanto você quer?", perguntou para a garota. Tinham só vinte anos de idade, o rapaz e a garota, mais ou menos um mês de diferença.

"Para mim chega", disse ela. "Acho que quero o meu com água."

Puxou uma cadeira e sentou-se diante da mesa de cozinha.

"Tem água naquela bica ali", disse Max. "É só abrir a torneira."

O rapaz pôs água no uísque, no seu e no dela. Deu um pigarro antes de também sentar diante da mesa de cozinha. Depois sorriu. Pássaros voavam ligeiro no alto, atrás de insetos.

Max ficou olhando para a televisão. Terminou o seu drinque. Estendeu a mão para ligar a luminária de pé e deixou o cigarro cair entre as almofadas. A garota se levantou para ajudá-lo a encontrar o cigarro.

"Quer mais alguma coisa, meu bem?", perguntou o rapaz.

Pegou o talão de cheques. Serviu mais uísque para si e para a garota.

"Ah, eu quero a escrivaninha", disse a garota. "Quanto custa a escrivaninha?"

Max abanou a mão ante aquela pergunta absurda.

"Faça uma proposta", respondeu.

Olhou para eles, sentados junto à mesa. À luz da luminária, havia alguma coisa na expressão do rosto dos dois. Por um mo

mento, aquela expressão pareceu conspiratória e depois se tornou terna - não havia outra palavra para aquilo. O rapaz tocou a mão da garota.

"Vou desligar a tevê e pôr um disco para tocar", avisou Max. "Esta vitrola também vai. Baratinho. Façam uma proposta."

Serviu mais uísque e abriu uma cerveja.

"Vai tudo de uma vez."

A garota estendeu o copo e Max serviu mais uísque.

"Obrigada", disse ela.

"Isso sobe rapidinho", disse o rapaz. "Estou ficando meio tonto."

Terminou seu drinque, esperou um pouco e serviu mais um. Estava preenchendo um cheque quando Max achou os discos.

"Escolha algum que você goste", disse Max para a garota e ofereceu os discos para ela.

O rapaz continuou preenchendo o cheque.

"Este aqui", disse a garota, e apontou. Não conhecia os nomes que constavam nos discos, mas aquele estava legal. Era uma aventura. Levantou-se da mesa e sentou-se outra vez. Não que- ria ficar parada.

"Vou fazer um cheque ao portador", disse o rapaz, ainda escrevendo.

"Está ótimo", disse Max. Terminou de beber o uísque e arrematou com um pouco de cerveja. Sentou de novo no sofá e cruzou uma perna sobre a outra.

"Por que você dois não dançam, crianças?", disse Max. "Essa é uma boa ideia. Por que não dançam?"

"Não, acho que não", respondeu o rapaz. "Quer dançar, Carla?"

"Vamos lá", disse Max. "A entrada da garagem é minha. Podem dançar à vontade."

Os braços de um em volta do outro, seus corpos apertados um no outro, o rapaz e a garota ficaram indo e vindo pela entrada da garagem. Estavam dançando.

Quando o disco terminou, a garota pediu para Max dançar. Ela ainda estava sem sapatos.

"Estou bêbado", disse ele.

"Não está bêbado", disse a garota.

"Bem, eu estou bêbado", disse o rapaz.

Max virou o disco e a garota chegou perto dele. Começaram a dançar.

A garota olhava para as pessoas aglomeradas no janelão da casa do outro lado da rua.

"Aquelas pessoas lá. Olhando", disse ela. "Está tudo bem?"

"Tudo bem", respondeu Max. "O terreno é meu. A gente pode dançar. Eles achavam que já tinham visto de tudo por aqui, mas isto ainda não tinham visto", disse.

Num instante ele sentiu o hálito quente da garota no seu pescoço e disse: "Espero que você goste da sua cama".

"Vou gostar", disse a garota.

"Espero que vocês dois gostem", disse Max.

"Jack!", disse a garota. "Acorde!"

O queixo de Jack se ergueu com um tranco e ele ficou olhando sonolento para os dois.

"Jack", disse a garota.

Ela abriu e fechou os olhos. Enfiou o rosto no ombro de Max. Puxou-o mais para perto.

"Jack", murmurou a garota.

Olhou para a cama e não conseguiu entender o que a cama estava fazendo ali no meio do jardim. Olhou para o céu, por cima do ombro de Max. Segurou-se ao corpo de Max. Estava repleta de uma felicidade insuportável.

Mais tarde, a garota disse:

"Era um cara de meia-idade. Todas as coisas dele largadas ali no meio do jardim. Não estou brincando, não. A gente ficou bêbado e dançou. Na entrada para a garagem. Ah, meu Deus. Não ria. Ele pôs uns discos para tocar. Olhe só esta vitrola. Ele deu para a gente. Aqueles discos velhos também. Jack e eu fomos dormir na cama dele. Jack ficou de ressaca e teve de alugar uma caminhonete de manhã. Para levar todas as coisas do sujeito. Depois eu acordei. Ele estava cobrindo a gente com um cobertor, o tal sujeito. Este cobertor aqui. Sente só."

Ela continuou a falar. Contava para todo mundo. Havia mais coisas, ela sabia disso, mas não conseguia exprimir em palavras. Depois de um tempo, parou de falar do assunto.


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