Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 14, 2008

Míriam Leitão Além de Wall Street


O avião que me trouxe a Nova Iorque chegou junto com um vôo da Suíça, de 700 passageiros, e outro de 300, do Paquistão, país que a imprensa americana costuma chamar de “o mais perigoso do mundo”. Mulheres de chador, algumas só de olhos de fora, negros, latinos, indianos e brancos se misturaram numa fila lentíssima, de várias voltas. Um bebê berrava no carrinho, mas só comovia o pai.

O pai sacudia o carrinho em aflição, mas a mãe, sem olhar o bebê, seguia a fila, lendo uma revista francesa com a qual parecia se divertir. Mais indiferentes ao choro do bebê só mesmo os três funcionários da imigração, que conversavam num banco perto da fila. Poucos guichês funcionavam, a fila não andava, as crianças se inquietavam, os idiomas se misturavam, a mochila com o computador e livros pesava, o casaco era um estorvo, e o heater (aquecedor) em alta temperatura. Tudo era desconfortável neste começo de semiférias que tirei. Continuarei aqui na coluna, mas tirei duas semanas de descanso da tevê, da tevê a cabo, do rádio e do blog. Uma volta aos tempos pré-multimídia. Mas com uma exceção: já mandei nota para o blog.

Os muçulmanos eram parados por longo tempo nos guichês — as mulheres em silêncio, ou agarradas às crianças, e os homens tentando convencer os funcionários do controle de passaporte. Os europeus passavam rapidamente, e nós, brasileiros, com alguma rapidez. Para aumentar a lentidão, os computadores paravam de vez em quando. Por sobre o barulho da sala, tentei seguir um pouco da notícia extra que interrompeu o noticiário da CNN. Era a entrevista do filho de Jesse Jackson, garantindo inocência no mais novo escândalo político de Chicago.

Os casos de corrupção no estado do presidente eleito Barack Obama são tão freqüentes que o New York Times fez uma linha do tempo, para lembrar os leitores dos vários casos. O ex-governador do estado está preso, o governador foi preso esta semana e saiu com fiança. O Wall Street Journal pôs, na primeira página, a transcrição da gravação dos telefonemas do governador Rod Blagojevich feita pelo Ministério Público. Tinha tanto palavra suprimida por um (f...) quanto nas gravações brasileiras. É universal: políticos corruptos falam uma linguagem rasteira nas suas conversas ao telefone.

Das outras notícias eu só conseguia ler as manchetes, porque me distanciei da tevê. Uma era que Obama assumia o seu nome do meio, “Hussein”. Um nome que costuma assustar funcionários e computadores da imigração. A outra era sobre o pacote de ajuda às montadoras americanas, de US$ 14 bilhões, aprovado na Câmara naquela noite e morto, dois dias depois, no Senado.

A curva serpenteou mais um pouco e consegui me aproximar da tevê a tempo de ouvir a entrevista do secretário de Comércio, Carlos Gutierrez. O que ele dizia à CNN era em tom de desespero: que as empresas da indústria automobilística não são um caso de concordata — o Chapter 11 —, mas que elas estão em colapso, desmoronando. A resistência que derrubou o pacote no Senado é dos republicanos, e estava ali um secretário do governo republicano dizendo que o governo Bush e os democratas achavam que o pacote era um caso de vida ou morte.

Crise econômica, calor, pacote, palavreado chulo de políticos em conversas gravadas, vendas de cargos, fila lenta, contradições do governo com a base aliada, tudo lembrava que não dá mais para falar a frase: “Só no Brasil”.

O motorista que me levou ao hotel avisou que o tempo está louco, com mudanças climáticas freqüentes: na segunda-feira tinha feito 17 graus Fahrenheit (o equivalente a -8 graus centígrados) e na quarta-feira, 63 graus Fahrenheit (17 graus positivos). A volatilidade não é só da bolsa.

A crise se vê nos detalhes. Nova Iorque se vestiu para o Natal como sempre fez, com vitrines e luzes. O mesmo Jingle Bell toca aqui e ali. Dentro das lojas há menos compradores, os preços estão em forte remarcação, como é mais comum após o Natal, e os compradores têm menos sacolas, principalmente se forem americanos. No Visitor Center da Blooningdale’s, onde fui pegar meu cartão de visitante para ter um desconto de 11% sobre compras que já estão com corte de 50%, enfrentei fila. A TV da sala mostrava a constrangida entrevista do presidente eleito Barack Obama sobre o escândalo da tentativa de vender a sua vaga no Senado. Ele enfrenta a primeira cobrança naquilo que prometeu mudar: a ética. Ele garante que nunca conversou com o governador sobre a vaga, e tem credibilidade, mas sua principal assessora trabalhou no governo de Illinois.

Há outras ligações próximas. O caso é muito feio, Obama tem cada vez mais popularidade neste início informal do seu governo, mas, no dia em que deveria falar apenas sobre suas boas escolhas para a energia e a área ambiental, falava do escândalo, na defensiva. Os estrangeiros estavam interessados em pegar os 11% de desconto. Eu, de olho na entrevista e nos comentários, ficaria até mais tempo na fila, mas chegou a minha vez e eu fui tratada como uma rainha: mais uma consumidora estrangeira que deixará dólares nos caixas da enorme loja de departamentos.

No Metropolitan Opera House verei Tristão e Isolda e, em única apresentação, um recital de Daniel Barenboim, considerado histórico pelos críticos. É o primeiro solo de piano no palco do Met desde Vladimir Horowitz, nos anos 80. Nova Iorque vai muito além de Wall Street.

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