Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 13, 2008

Fôlego, de Tim Winton

Águas profundas

Fôlego é um romance sobre um surfista adolescente – mas sua narrativa sutil cativa até mesmo o leitor que não quer saber de ondas


Cristovão Tezza

Mark Baker/AP
NATUREZA DESAFIADA
Surfistas na Austrália: no livro, o esporte é representado como um rito de passagem para a idade adulta

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Trecho

Um surfista adolescente como o herói de um complexo romance para adultos – por improvável que pareça, é isso que encontramos em Fôlego (tradução de Juliana Lemos; Argumento; 256 páginas; 32 reais), do escritor australiano Tim Winton, de 48 anos, autor de mais de uma dezena de livros que vão da literatura infanto-juvenil ao ensaio e completamente desconhecido no Brasil. O livro surpreende pela combinação da aparente leveza do tema – adolescentes fascinados pela descoberta do surfe – com um duro e impiedoso olhar sobre os ritos de passagem à vida adulta.

Ambientado na Austrália dos anos 1970, e tendo como pano de fundo a virada de costumes e valores que marcou a época, Fôlego conta a história de Bruce Pikelet, filho único de um casal pacato. O menino tem uma habilidade especial com a água, sempre testando os limites da resistência sem respirar, e se torna amigo do encrenqueiro Loonie, um ano mais velho, com quem vive uma relação de admiração e de secreta competição. É uma dupla clássica dos romances de formação: amigos de temperamentos opostos que se complementam, e Tim Winton os retrata com uma maravilhosa sutileza, dizendo mais pelo que omite do que pelo que conta. Entramos no coração do romance quando ambos conhecem um ex-surfista profissional, Sando, que vive com a companheira, Eva, numa casa isolada, com um cachorro, uma velha Kombi, cheiro de maconha e pranchas de surfe – é um cromo perfeito do ideário alternativo de um tempo que passou.

A relação de Sando com o surfe é carregada de uma mística secreta. Ele procura os locais mais inóspitos e perigosos para iniciar seus discípulos – porque ele vai se tornando uma espécie de guru – num perigoso teste dos limites humanos. Tematicamente, o culto da vida natural que transparece em vários momentos se aproxima mais da literatura de Ernest Hemingway, até pela linguagem enxuta, do que de um eventual sopro oriental que foi a marca dos anos 70. Detalhe fundamental, toda a perspectiva do romance se faz pelo enquadramento do olhar adulto: o narrador relembra fatos de quarenta anos antes. Ficamos sabendo pouco desse homem maduro, mas o pouco que ele nos diz em sua bela narrativa é suficiente para sentir o peso e o abalo de um inesquecível rito de passagem, como se ele mesmo ainda lutasse para compreender o sentido do que viveu.


LIVROS

Trecho de Fôlego, de Tim Winton

PASSAMOS VOANDO pela avenida ladeada de árvores com a sirene e as luzes ligadas, e quando o GPS nos diz para virar na próxima esquerda, viramos tão rápido que todo o equipamento escorrega e se choca contra as paredes do veículo. Eu não digo nada. No fim da rua escura do subúrbio consigo ver a casa, acesa feito um navio.

Já vi, diz ela, antes mesmo que eu possa chamar sua atenção.

Sinta-se à vontade para ir mais devagar.

Tô te deixando nervoso, Bruce?

Talvez, respondo em voz baixa.

Mas na verdade eu me sinto ótimo. É nessas horas que me sinto bem, quando as terminações nervosas cantam, quando o estômago fica contraído de tanta expectativa. O plantão tinha sido lento, comprido, e eu e Jodie não gostávamos nem um pouco um do outro. Na hora de pegarmos as tarefas do dia, eu acabei ouvindo uma conversa que não deveria ter ouvido. Mas aquilo tinha acontecido há horas. Agora, eu estava alerta, estimulado pela terrível antecipação. Pode mandar.

Quando chegamos ao endereço da chamada, Jodie desliga a sirene e faz uma manobra para entrar de ré na garagem em declive. Ela está cheia de adrenalina, imagino, e também um tanto arrogante, convencida da própria competência. Não é uma menina ruim, só inexperiente. Ela não sabe, mas tenho filhas da idade dela.

Quando ela puxa o freio de mão e confirma pelo rádio a nossa chegada, eu pulo do veículo e abro a porta lateral para pegar o kit de emergência. Um pouco abaixo dos degraus que levam à varanda, sobre a grama cheia de orvalho, está um homem de meia-idade, abraçando-se em silêncio, e num segundo consigo perceber que, embora ele provavelmente tenha machucado a clavícula, não é por causa dele que estamos ali. Então eu o deixo aos cuidados de Jodie e subo os degraus para anunciar minha chegada à porta, que está aberta.

Na sala de estar, duas adolescentes de ombros caídos, cada uma numa ponta do sofá de couro.

Lá em cima?, pergunto.

Uma delas aponta sem nem mesmo levantar a cabeça, e eu já sei que o trabalho agora é só questão de empacotar e levar embora. No geral, as pessoas vêem o uniforme e seus rostos se iluminam de esperança, mas nenhuma delas sequer olhou para mim.

O quarto em questão é fácil de achar. Uma pequena poça de vômito no corredor. Fragmentos de madeira arrebentada. Passo pela porta quebrada no chão e vejo a mãe à cama, onde está o garoto e, ao mesmo tempo em que me apresento delicadamente, observo o lugar. O quarto cheira a maconha, uri- na e desinfetante, e é óbvio que ela cortou a corda que o prendia, o vestiu e arrumou tudo.

Fico ao lado dela e faço o que preciso fazer, mas o garoto já se foi há algum tempo. Ele parece ter uns dezessete anos. Marcas de corda em seu pescoço, hematomas mais antigos ao redor das marcas. Mesmo enquanto realizo os procedimentos de rotina, ela acaricia os cabelos escuros e encaracolados dele. Um rapaz bonito. Ela deu banho nele. Ele cheira a sabonete Pears e a roupas recém-lavadas. Pergunto a ela o seu nome e o nome de seu filho. Ela me diz que se chama June e seu filho se chama Aaron.

Sinto muito, June, mas ele faleceu.

Eu sei.

Você o encontrou faz um tempinho, antes de ligar, não foi?

Ela não diz nada.

June, eu não sou da polícia.

Eles já estão a caminho.

Posso abrir o armário?, pergunto, enquanto Jodie aparece na porta.

Acho melhor não, diz June.

Certo. Mas você sabe que a polícia vai abrir. Eles precisam mesmo?

A mãe olha para mim de verdade pela primeira vez. É uma mulher bonita, com quarenta e poucos anos, cabelos escuros e curtos e brincos de pingentes rebuscados nas orelhas, e dá para imaginar que, há uma hora, quando seu batom e sua vida ainda estavam intactos, ela devia estar altiva, confiante, até mesmo um pouco orgulhosa. É o trabalho deles, June.

Você parece estar... fazendo alguma suposição. June, eu digo, olhando de relance para Jodie. Digamos que eu já vi várias coisas na minha vida. Sério, nem dá para descrever o que eu vi.

Então me explica como isso aconteceu, por que ele fez isso com ele mesmo.

Já chamei outro carro, disse Jodie.

Ah, legal, murmuro. June, essa é a Jodie. Ela é a minha parceira hoje. Vai, me diz o que aconteceu.

O seu marido fraturou a clavícula, diz Jodie. Ele quebrou a porta do quarto, não foi?

Então o que eu digo pra eles?, pergunta a mãe, ignorando Jodie totalmente.

É você quem decide. Mas não precisa ter vergonha de falar a verdade. É melhor para todo mundo, eu digo.

A mulher olha de novo para mim. Agacho-me a seu lado, junto à cama. Ela alisa a saia até os joelhos.

Acho que devo ser transparente, ela murmura.

Tento sorrir para ela da maneira mais gentil possível, mas sinto o rosto rígido. Atrás dela, vejo os pôsteres habituais na parede: surfistas, roqueiros famosos, mulheres em poses provocantes. A estante de livros acima da mesa tem troféus de eventos esportivos e lembranças de Bali, e o protetor de tela do computador é um ciclo das torres gêmeas, caindo infinitamente. Ela faz um movimento com a mão, em busca da minha, e eu permito. Ela está tão fria quanto seu filho morto.

Ninguém vai entender.

Não. Provavelmente não, eu digo.

Você é pai.


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