Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 16, 2008

Um Crime Americano, com Ellen Page

Predadores de crianças

Um filme sobre como adultos se transformam em monstros


Isabela Boscov

A cada vez que se revela um desses hediondos casos de cativeiro e abuso de crianças, como o da goiana que mantinha uma menina aprisionada em sua casa para fins de tortura, restam lacunas insondáveis: como se instala o ritual de sujeição, e como é possível que ele passe despercebido a vizinhos e familiares – ou, ainda mais apavorante, que estes se deixem cooptar? (A goiana Sílvia Calabrese Lima, por exemplo, aliciou a participação regular de uma empregada no suplício de sua vítima; e é provável que o austríaco Josef Fritzl, que manteve uma filha presa no porão por 24 anos e a engravidou sete vezes, tenha contado com a ignorância voluntária de sua mulher.) Um Crime Americano (An American Crime, Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país, não pretende oferecer uma tese geral para esse mecanismo. E por isso mesmo, por se ater com minúcia aos detalhes de um caso em particular, termina por ser terrivelmente esclarecedor sobre todos eles.

Em 1965, as adolescentes Jennie e Sylvia Likens foram deixadas pelos pais, que trabalhavam em parques de diversões itinerantes, com uma passadeira de Indianapolis, mediante pagamento de 20 dólares semanais. Os Likens tinham acabado de conhecer Gertrude Baniszewski. Mas, por ela ter um punhado de filhos, julgaram, com comodismo considerável, que as meninas ficariam bem. Doente, desequilibrada, sem dinheiro e mergulhada numa paixão obsessiva por um homem mais jovem, Gertrude (no filme, a excelente Catherine Keener) logo elegeu Sylvia (Ellen Page, de Juno) para o papel de causadora e catalisadora de todos os seus problemas. Em semanas, passou das surras para queimaduras, espancamentos, mutilações e sodomia. Convocou os filhos a participar das sevícias e, a seguir, também os amigos deles. Todos concordaram; nenhum deles a denunciou; e os vizinhos, que ouviam os gritos, acharam que não convinha se meter na vida alheia.

Conforme os testemunhos de todos os participantes desse horror, Sylvia nunca afrontou Gertrude. Ao contrário, parece ter acreditado que aquiescer nas acusações e nos castigos protegeria a irmã e reduziria a ira de sua torturadora – o que, claro, só fez o processo escalar. A fórmula exata há de variar de caso para caso. Mas Um Crime Americano mostra que certos ingredientes são constantes nela: uma presa em desvantagem, um predador que fareja a fragilidade e sabe despertar esse instinto em outros, e um círculo fechado de indiferença em redor desses personagens. Ingredientes que, tragicamente, parecem existir em abundância, à espera apenas de ser combinados.

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