Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 02, 2008

Um alpinista cego no topo do Himalaia

Um cego no topo do mundo

Os impressionantes feitos de Erik Weihenmayer, o alpinista
americano que já subiu ao topo das maiores montanhas
do planeta – sem enxergar o caminho


Jerônimo Teixeira

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Exclusivo on-line
Trecho do livro

Ao alcançar o topo do Monte Kosciusko, na Austrália, em 2002, o americano Erik Weihenmayer completava um esforço de sete anos para alcançar os Sete Cumes – as montanhas mais altas de cada continente, incluindo o Everest, na fronteira entre a China e o Nepal, o ponto mais alto do mundo, com 8 850 metros. Não era um feito inédito – dezenas de alpinistas já cumpriram o mesmo roteiro. Mesmo assim, Weihenmayer é um pioneiro: foi o primeiro cego a realizar esse feito. Superou barreiras que se julgavam impossíveis para um deficiente visual – como a escalada de paredões de gelo. Parte dessa experiência está narrada em um livro recém-lançado no Brasil, As Vantagens da Adversidade (tradução de William Lagos; Martins Fontes; 280 páginas; 29,80 reais). Parceria de Weihenmayer com o guru empresarial Paul Stoltz, a obra utiliza as experiências do alpinista como exemplo de técnica de superação da adversidade no dia-a-dia, especialmente no trabalho. Em entrevista a VEJA, por telefone, de sua casa no estado do Colorado, Weihenmayer mostrou-se fiel ao espírito de auto-ajuda do livro. "Todas as pessoas têm, dentro delas, alguma coisa que as faz responder à adversidade – algo que eu, na falta de palavra melhor, chamo de luz. É por isso que a adversidade pode nos tornar melhores e mais fortes", diz.

"Luz" é talvez uma palavra inusitada no vocabulário de um cego. Weihenmayer, porém, se vale de outros conceitos surpreendentes – ele diz que é, sim, capaz de apreciar o cenário que se descortina na árdua subida de uma montanha, tateando as rochas, palmilhando o terreno e escutando as diferenças no som à medida que o ar fica mais rarefeito com a altura. "É todo um cenário não-visual", diz. E esses cenários sem luz são diferentes de uma montanha para outra. O Aconcágua, nos Andes argentinos, o ponto culminante das Américas, é rochoso, com pouca neve, mas muito vento e pó. Em contraste, o Monte McKinley, no Alasca, é úmido e muito, muito frio. De todos os sete picos, foi o mais difícil para Weihenmayer – pela circunstância de ter sido o primeiro. "Eu não sabia que uma escalada podia ser tão sofrida", diz o alpinista. Weihenmayer perdeu mais de 10 quilos e voltou com queimaduras do sol e do vento no rosto.

Hoje com 39 anos, Erik Weihenmayer tinha 13 anos quando ficou completamente cego, em decorrência de uma moléstia degenerativa da retina. Alguns anos depois, participou de um fim de semana de escaladas promovido por uma associação de apoio a deficientes visuais – e logo se apaixonou pelo esporte. Descobriu que, ao subir um paredão de rocha, poderia usar suas mãos para "ver", apalpando fissuras e saliências. Ao longo dos anos, Weihenmayer e seus colegas de equipe foram aprimorando técnicas especiais para superar os entraves da falta de visão. Um sistema especial de sinais e de comunicação por rádio foi desenvolvido para que o aventureiro cego pudesse descer o Elbro – o monte mais alto da Europa, na Rússia – de esquis. O mais complicado foi a técnica para subir paredões de gelo, essencial na conquista do Everest e do maciço de Vinson, na Antártica. O alpinista usa uma espécie de picareta de gelo para buscar pontos nos quais se fixar. É uma empreitada delicada: bater com essa ferramenta no ponto errado pode resultar no deslocamento de blocos de gelo capazes de esmagar quem se encontra abaixo. Weihenmayer aprendeu a usar o cabo da picareta como uma bengala de cego, "cutucando" o gelo e avaliando sua segurança pela vibração produzida.

Os feitos de Weihenmayer têm se revelado inspiradores para os que, como ele, sofrem de deficiência visual. Não por acaso, os cerca de
300 000 dólares de sua excursão ao Everest, em 2001, foram patrocinados pelo National Federation of the Blind, organização americana que se dedica a melhorar a condição dos cegos. O alpinista também tem servido, em diferentes ocasiões, como tutor para jovens cegos que desejam ganhar as alturas – em 2004, levou um grupo de seis garotos tibetanos cegos em uma subida parcial do Everest, até a altura de 6 500 metros. Inquieto, Weihenmayer não quer parar só nos Sete Cumes. Para este mês, tem planejada a escalada do formidável monte de Nova Guiné, a Pirâmide de Carstensz (muitos alpinistas dizem que esse, e não o Monte Kosciusko, é o verdadeiro sétimo cume). Para Weihenmayer, o único inconveniente de sua vida de aventuras é o tempo que ele passa longe da família – mulher e um casal de filhos (o mais novo é um garoto do Nepal, adotado há poucos meses). Mas ele não deseja parar. "Enquanto eu tiver saúde, vou continuar escalando montanhas. Quem sabe um dia o meu filho não me acompanhe, carregando a mochila para mim", diz.


LIVROS

Trecho de As Vantagens da Adversidade,
de Paul Stoltz e Erik Weihenmayer

As vantagens da adversidade

CONVOQUE SUAS FORÇAS

ACONCÁGUA

Acampamento-base: 4.200 metros de altura

Cume: 6.959 metros – o pico mais elevado da América do Sul

O que não me destrói,me fortalece.

FRIEDRICH NIETZSCHE

Muitas pessoas aceitam a idéia de que a melhor maneira de otimizar seu potencial é avaliar seus pontos fortes naturais (referindo-se com isso a seus talentos ou dons) e então erguer seus objetivos ao redor deles. É claro que os pontos fortes naturais são importantes, mas, se você confiar unicamente neles, pode acabar se impondo uma lamentável limitação.

Beethoven escreveu suas melhores músicas, incluindo sua grande Nona Sinfonia, depois que ficou surdo. Imagino só o que poderia ter acontecido se um orientador profissional tivesse dito a ele que escolhesse uma profissão "mais adequada para uma pessoa surda".Muitas vezes disseram a Van Gogh que ele era um péssimo pintor. E se ele tivesse escutado seus detratores em vez de utilizar as críticas como combustível para sua paixão? Teria Einstein, que, quando criança, foi rotulado como inadequado para a vida escolar, seguido uma carreira científica caso a orientadora educacional de sua escola o tivesse persuadido a aprender um ofício manual? O que teria acontecido com os incontáveis líderes empresariais portadores de dislexia – Richard Branson, das empresas Virgin, e John Chambers, do conglomerado Cisco, entre eles – se tivessem aceito "as conhecidas limitações" de seu diagnóstico? Falando de maneira mais pessoal, imagino quantos alpinistas cegos existiriam. Pense em todos os mestres que, em determinada época, foram desajeitados. Pense em todos os pontos fortes que jazem adormecidos dentro de cada um de nós, só esperando para ser convocados.

Em geral, as melhores coisas da vida não vêm de forma natural. Portanto, você precisa ter a coragem de decidir o que quer fazer, por que isso é importante, e se terá força de vontade para perseverar. Em seguida, descubra quais são os pontos fortes de que dispõe, ou que talvez tenha de desenvolver – desde o início, se for necessário –, para fazer com que isso aconteça. Então, você terá de tentar, de ir à luta, de falhar e falhar mais uma vez, até alcançar os resultados que está buscando.A partir da experiência de aprender a refinar os elementos primários – habilidade e força de vontade – é que surgirão suas forças.Que a adversidade seja a chama na qual são forjadas as suas forças.

Concentrar-se exclusivamente naquilo em que você já é bom pode ser, de fato, uma forma inconsciente de esquivar-se da adversidade inerente a todo esforço. Em vez disso, o que você quer é usar a adversidade para ajudá-lo a cultivar forças inteiramente novas e aguçar as que já existem. Pense nas vezes em que enfrentou uma situação difícil e, sem a menor intenção, saiu dela com uma nova confiança em si mesmo, uma nova percepção das coisas ou talvez uma conexão mais profunda com a magnitude da sua própria resistência. Aposto que você não trocaria esses momentos por nada deste mundo. Nem eu.

Do mesmo modo que pode desenvolver forças por meio da adversidade, você também precisa saber utilizá-las bem quando a adversidade dói mais. De pouco vale uma lista impressionante de forças se você não é capaz de liberá-las diante de um verdadeiro revés. Só quando faz isso, elas se tornam realmente suas.

Mas não importa quantas forças você possa reunir e utilizar eficientemente, é quase impossível atingir a grandeza sozinho. Ligar-se às pessoas certas pode ampliar o âmbito e o alcance do seu impacto. Todavia, a fórmula para escolher a equipe que vai se prender à mesma corda que você é muito mais complexa do que simplesmente inserir pessoas nos lugares adequados com base nas suas habilidades atuais, como se fossem peças de um jogo de montar.

O Segundo Pico irá ajudá-lo a fazer o que tive de fazer no Aconcágua: checar cruamente quais são suas reais capacidades neste momento, tendo em vista suas aspirações mais elevadas, bem como as forças que você ou sua equipe terão de desenvolver para chegar ao ponto que desejam atingir. Assim você estará equipado para repensar esse conceito de forças, de modo que você e sua equipe possam dar o melhor de si nos momentos mais árduos. Finalmente, você aplicará tudo o que aprendeu ao reunir as forças da equipe. Em vez de ser um impedimento, a adversidade se tornará a trilha através da qual suas forças crescerão e acabarão por brilhar.

O Aconcágua, que é o pico mais alto do hemisfério Sul, salientou todas asminhas fraquezas e muito pouco dos meus pontos fortes. No McKinley, conseguia escutar os passos dos meus companheiros de alpinismo pisando a neve e o gelo à minha frente, e todos estávamos amarrados ao mesmo cabo, de modo que seguir os outros era mais fácil. O Aconcágua, porém, além de ser um dos lugares mais ventosos da Terra, é formado principalmente por rochas e seixos – cascalhos soltos e móveis que tornam quase impossível firmar os pés. Naquele vento ululante e através das rochas, o som dos passos se perderia completamente.

Além disso, o monte McKinley era uma ladeira de neve macia e lisa: uma vez planejados meus próximos passos, era capaz de manter um bom ritmo e conservar bastante energia. Mas, no Aconcágua, teria de atravessar constantemente campos de rochas de todos os tamanhos, além dos letais cumes de gelo chamados penitentes, que se erguem do solo como presas retorcidas de mais de ummetro de altura.Nas trilhas, usava longos bastões de esquiador para manter o equilíbrio e sentir o caminho; mas sobre as pedras e penitentes, com imensas fendas ziguezagueando entre um passo e outro, eu me movia com a metade da velocidade e o dobro do esforço. As conseqüências de um passo em falso seriam uma perna quebrada ou algo pior.

Da primeira vez que minha equipe e eu tentamos galgar o Aconcágua, não conseguimos chegar ao pico. Encontramos condições climáticas extremamente frias e desfavoráveis e, assim, ficamos estacionados em um acampamento mais abaixo. Como resultado, quando finalmente um dia claro e sem vento apareceu sobre a montanha, não estávamos posicionados no acampamento mais alto e não pudemos aproveitar a oportunidade. O terreno difícil também me cobrara um alto preço. No décimo sexto dia, quando finalmente nos dirigimos ao cume, eu estava exausto e me movia devagar demais. À altura dos 6.300 metros, com ventos ferozes nos empurrando de volta, eu não conseguia mais escutar o meu parceiro de escalada, Chris Morris, subindo à minha frente. Eu me senti desorientado e experimentei um certo pânico – não estava apenas cego,mas surdo também. Chris nos reuniu para gritar que a escalada tinha terminado. As barreiras da montanha simplesmente eram demais para nossas habilidades coletivas. Tinha sido uma subida tão difícil e incômoda que a maioria dos meus amigos não estava mais interessada em fazer uma nova tentativa. Além disso, com seu parceiro cego atrasando a subida, provavelmente não se sentiam muito estimulados para uma nova tentativa.

Mas eu estava determinado a tirar proveito dessa adversidade – nosso fracasso –, embora soubesse que minha força de vontade sozinha não seria o suficiente. Precisava desenvolver novas habilidades para ser capaz de superar aquele terreno hostil. Assim, durante o ano seguinte, eu me dediquei a desenvolver as habilidades que me faltavam – e que eu sabia que seriam necessárias para termos sucesso na escalada do Aconcágua. Pratiquei nas encostas dos chamados fourteeners do Colorado – picos de 14.000 pés (ou 4.200 metros) cujo terreno rochoso é semelhante ao do Aconcágua. Treinei com bastões especiais para alpinismo, a fim de poder me equilibrar melhor nos pontos mais precários. Mais do que isso, criei uma nova técnica: subia em um rochedo e colocava todo o meu peso na perna que ficava mais atrás, dobrava bem o joelho e esticava o outro pé até encontrar o rochedo seguinte. Então, levava os bastões para o lado oposto da larga fenda e os plantava firmemente nas laterais do lugar em que pretendia pisar. Treinei muito, carregando pesos extras na mochila, para que pudesse avançar com energia quando fosse necessário. Chris e eu desenvolvemos uma nova forma de comunicação, utilizando uma sineta, que Chris balançava à direita e à esquerda, ajudando-me assim a segui-lo através do vento e das rochas.

Praticamos vezes sem conta, sabendo que não seria suficiente dominar essas novas técnicas em condições calmas. Tínhamos de fazer com que funcionassem em condições climáticas piores. E logo tivemos nossa oportunidade para isso. No nosso último treino, os ferozes ventos do Colorado não paravam de nos fustigar, e tive de me esforçar muito para manter a mente tranqüila no meio daquela fúria, enquanto percorríamos as cristas expostas para chegar aos diferentes picos. Tinha de me esforçar e me concentrar mais do que os outros,mas ninguém me prometera uma vida fácil ou justa, e eu não me importava. Estava agradecido por ter encontrado um jeito de fazer algo que eu adorava.

Então, formamos um novo grupo e fomos enfrentar o Aconcágua uma segunda vez. Mas logo no acampamento-base Chris e eu perdemos nosso único companheiro, que teve de descer depois de ser acometido agudamente pelo mal-das-montanhas, o enjôo da altitude. A partir desse momento, éramos só nós dois, e Chris me avisou claramente: "Agora, não podemos nos dar ao luxo de cometer o menor erro."

Como havia acontecido no ano anterior, o tempo não estava nem bom nem ruim, mas continuamos avançando pelos locais de acampamento montanha acima, sabendo muito bem que, desta vez, tínhamos de estar colocados em posição que nos permitisse atingir o cume assim que o tempo melhorasse. Houve um dia em que nos sentimos tão fortes que chegamos a pular um dos acampamentos intermediários e subimos quase 1.200 metros até o acampamento seguinte.

No dia em que pretendíamos galgar o pico, já a 6.300 metros de altitude, encontramos ventos ainda mais fortes que no ano anterior, soprando a noventa e seis quilômetros por hora.Naquele ano, eu começara a manhã usando roupas demais, de modo que, quando cheguei à zona de vento, estava molhado de suor e, instantaneamente, gelei. Dessa vez, usava menos roupas e trazia na mochila algumas peças adicionais. Nós nos abrigamos atrás de um rochedo e vestimos tudo o que tínhamos para nos proteger da fúria gélida do vento,mas não foi o bastante. Enquanto lutávamos para subir a encosta, a sineta de Chris, que até então funcionara perfeitamente, deve ter congelado, porque não conseguia mais escutá-la – justamente quando mais precisava dela. O vento nos empurrava para baixo, e começamos a considerar uma retirada. Mas havíamos treinado bastante e tínhamos adquirido a habilidade necessária para seguir em frente, com a idéia de que, se simplesmente pudéssemos ultrapassar o vento, chegaríamos a uma zona mais calma a sotavento da montanha.

Chris sabia que eu não escutava seus gritos, por isso, durante três horas, ele continuamente se virava na minha direção, batendo o bastão contra as rochas e, com os dedos desprotegidos na boca, assobiando o mais alto que podia. Todo aquele treinamento com carga pesada estava pagando dividendos agora. Na altura de 6.450 metros, o vento diminuiu de intensidade, mas o frio aumentou. Quando cambaleei sobre o cume rochoso, a altitude extrema, aliada à minha completa exaustão, fez com que minha conexão com a terra parecesse tênue, como se eu percebesse a realidade através do buraco de uma agulha muito distante. Mas havíamos chegado ao topo, finalmente, após dois anos de tentativas.

Quando retornei ao acampamento "elevado", desabei sobre a terra congelada, jazendo ali,metade de mim convencida de que eu não fora feito para esse tipo de vida. Não era resistente o suficiente, não tinha a elasticidade necessária. Além disso, que atividade mais ridícula para um cara que nem conseguia ver! Mas a outra metade de mim não podia me imaginar fazendo qualquer outra coisa na vida. Queria passar a vida subindo montanhas. Tive um professor na faculdade que dizia que os seres humanos são, provavelmente, a única espécie em todo o reino animal capaz de sonhar além de suas limitações. Acho admirável essa qualidade. Acomodar-nos às forças que já temos e aos caminhos que elas nos permitem percorrer é o mesmo que extirpar da psique os anseios mais profundos, as aspirações mais elevadas e as qualidades transformadoras que definem nossa vida.

No ano anterior, com melhores condições de tempo, não conseguira alcançar o pico. Dessa vez, utilizamos a adversidade daquele fracasso para nos tornar mais fortes e mais capazes. Quanto mais asperezas encontramos, tanto melhores ficamos. Juntas, a força de vontade e a habilidade forjaram novas forças que superaram minhas fraquezas e nos conduziram a um lugar a que a maioria das pessoas pensava que jamais chegaríamos. A adversidade nos preparou para os desafios maiores que havia pela frente. Através do Segundo Pico, você poderá fazer o mesmo.


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