Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 02, 2008

Crianças ligadas em tudo

Tudo ao mesmo tempo - e agora

Pelo computador e pelo celular, as crianças conversam
com vários amigos, jogam videogame e ainda discutem
com os pais. Agora você pelo menos sabe o nome disso:
seu filho é multitarefas


Sandra Brasil

Otavio Dias de Oliveira

LIGADA, SEMPRE
Beatriz, 10 anos, muitas atividades simultâneas e boas notas na escola: "Tenho de ficar atenta a tudo"

Era uma vez uma rotina em que criança bem-criada e educada era aquela que tinha horário para tudo e não misturava as coisas: brincar era brincar, estudar era estudar, ver TV... bem, todo mundo entendeu o conceito. Pobres dos pais que ainda alimentam alguma ilusão de ritmo seqüencial. Cercadas de aparelhos eletrônicos que dominam desde cedo, as crianças da era dos estímulos constantes e simultâneos são capazes de executar três, quatro, cinco atividades ao mesmo tempo – e prestar pelo menos alguma atenção a todas elas. Têm até uma designação, dada por especialistas em nomear coisas que todos sabem o que são, mas não como se chamam: são crianças multitarefas, e encaram isso com total naturalidade. "Eu tenho de ficar atenta a tudo. Parece que tenho quatro olhos e quatro ouvidos", descreve Beatriz Dreger, 10 anos, que costuma ouvir música, conversar on-line com os amigos, checar mensagens e ainda deixar a televisão ligada à espera de seus programas preferidos, tudo isso enquanto faz a lição de casa. E Beatriz é ótima aluna. Pesquisa realizada em maio pela Turner Internacional do Brasil, responsável pelo canal pago de televisão Cartoon Network, confirmou que 73% dos meninos e meninas entre 7 e 15 anos têm o hábito de combinar um número de tarefas simultâneas que varia de três, para os menores, a até oito, no começo da adolescência. "A princípio, uma coisa chama mais atenção do que outra. Mas a partir dos 9 anos a criança já consegue dividir a atenção de maneira equilibrada", diz a publicitária Renata Policicio, que coordenou a pesquisa. "Como não querem perder tempo nem informação, ficam ligadas em tudo e absorvem como esponjinhas."

Uma explicação para o fenômeno é neurológica: o cérebro infantil, superestimulado, funciona a mil. "Qualquer teste de desenvolvimento de inteligência mais antigo concluirá que a criança de hoje é gênio", afirma o neurologista infantil José Salomão Schwartzman,70, professor de pós-graduação da Universidade Mackenzie, de São Paulo. "De fato, ela é mais inteligente, porque tem o cérebro exposto a uma quantidade crescente de estímulos desde cedo e estabelece precocemente um número maior de conexões entre neurônios", explica. Os resultados espantam pais e professores. "Para estudar, eu precisava de silêncio. Meus filhos Guilherme, de 11 anos, e Heloísa, de 8, não ligam para isso", diz Rita de Cássia da Silva, 36, uma das 29 mães que aceitaram o convite dos pesquisadores para anotar todas as atividades das crianças durante quatro dias. "O momento mais surpreendente para mim foi quando vi que minha filha falava ao telefone com um primo sobre um trabalho da escola, conversava pelo MSN – notebook no colo – com uma prima e ainda estava de olho na televisão", lembra Rita. Outra que levou susto foi a gerente de loja Jacqueline Waiswol, 37, que também fez um diário das atividades do filho, Thomas, 7. "Um dia ele estava jogando videogame, brincando com um bonequinho e, com o rabo do olho, assistindo a um seriado na TV", lembra. "Perto dele, minha filha me dizia aonde precisava ir à tarde. Thomas, sem parar nada do que estava fazendo, declarou: ‘Eu não vou junto’." Estranhamente, funciona. "Na avaliação das próprias crianças pesquisadas, a tecnologia faz com que elas sejam mais rápidas no pensamento e na hora de escrever", diz Renata Policicio, a coordenadora da pesquisa.

Oscar Cabral

LIMITE NA REDE
Eric, 10 anos, horário para brincar e para se conectar: sem internet, mistura livro, lição e TV

Há pontos negativos, evidentemente. Um deles é a crescente dificuldade de relacionamento pessoal para a meninada, que, quando não está na escola, ocupa boa parte de seu tempo com jogos e amigos virtuais. "Nada substitui a relação pessoal. É através dela que a criança aprende a trabalhar em equipe, lidar com as frustrações e ceder nos momentos adequados", adverte a psicóloga Suzy Camacho, autora do livro Guia Prático dos Pais. Consciente das limitações da vida virtual, a gerente de vendas Angelita Baliú, 42, do Rio de Janeiro, tenta expandir os horizontes do filho Eric, 10. Ele só tem autorização para ficar uma hora por dia no computador e uma hora jogando videogame. "Se deixar, passa o dia todo, mas faço questão de que ele desça para brincar com outras crianças", diz Angelita. Eric até sobrevive sem eletrônicos, mas continua a diversificar suas atenções. "Já o peguei lendo um livro enquanto fazia o dever de matemática e assistia ao noticiário na TV", conta a mãe. "E ainda comentou uma reportagem."

Fotos Oscar Cabral e Lailson Santos

FERAS DO TECLADO
Atenção dividida: Giovanna, 9 anos, que digita com todos os dedos (inclusive polegares), e os irmãos Guilherme, 11, e Heloísa, 8, conversam enquanto jogam e acham normalíssimo

Com crianças assim, professores comprometidos com resultados precisam se esfalfar para tornar suas aulas atraentes. "Apela-se para todos os recursos tecnológicos disponíveis. GPS para explicar geometria, pesquisa na internet para quase tudo", descreve Sérgio Boggio, 61, diretor de tecnologia aplicada à educação, do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. Para crianças agilíssimas no teclado (inclusive com os polegares, esse apêndice subutilizado que o celular e o videogame tornaram indispensável), o Instituto GayLussac, de Niterói, oferece revisões e lição de casa on-line. Giovanna Saffi, de 9 anos, acha normal. Aluna da 3ª série da escola, ela já foi blogueira do suplemento infantil de um jornal e se orgulha de ter aprendido sozinha a digitar com os dez dedos. "Divido o teclado em duas metades e uso o polegar para as teclas do meio", ensina. A rapidez e a multiplicidade podem ter certo custo. "Percebo que as crianças processam rapidamente um número maior de informações, mas num nível superficial. Ir fundo num assunto é difícil para elas", diz o professor Boggio. "Isso acontece porque o cérebro humano dispõe de capacidade limitada e, conseqüentemente, para ter eficiência máxima, precisa que o foco de atenção seja também limitado", explica o neurologista Schwartzman. Autor de um livro sobre o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), Schwartzman traça uma relação, cautelosa como exige um tema de semelhantes dimensões, entre a propagação da multitarefa no universo infantil e o aumento de crianças diagnosticadas com o distúrbio. "Uma das causas, com certeza, é o fato de que se expõe a criança a um número excessivo de estímulos, sob pressão para que ela seja cada vez mais veloz em várias atividades", diz. Para quem tem pressa em determinar as conseqüências futuras das atividades simultâneas, a ciência ainda responde em ritmo do passado. "Vamos ter de esperar uma ou duas gerações para saber se a multitarefa será predominantemente positiva ou negativa na fase adulta", acredita Schwartzman.

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