Humor com autocrítica
No delicioso e licencioso Trovão Tropical, um grupo
de astros mimados é largado na selva – mas não
percebe que saiu da ficção e entrou na realidade
Isabela Boscov
SOCORRO, O DIRETOR EXPLODIU |
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Em Trovão Tropical (Tropic Thunder,Estados Unidos, 2008), que estréia nesta sexta-feira no país, Ben Stiller toma ao pé da letra o conselho predileto dos professores de roteiro, de que se deve escrever sobre aquilo que se conhece. Filho do comediante Jerry Stiller e da atriz Anne Meara, respeitados mas não exatamente célebres, ele conhece bem as vagarias do meio artístico; e, sendo ele próprio um astro (além de, neste filme, diretor e co-roteirista), Stiller é íntimo também da presunção, da petulância e das armadilhas que o sucesso pode engendrar. Se não enxergasse além do próprio umbigo, talvez ele tivesse transformado essas inseguranças em material para lamúria. Mas, pelo jeito, Stiller preserva algum senso de proporção sobre o mundo autocentrado em que vive. E, sem tentar se eximir desses pecadilhos, aplica-os aqui em uma comédia tão licenciosa quanto radiante.
Trovão Tropical começa com um punhado de trailers que apresentam os protagonistas da história: o rapper Alpa Chino (Brandon T. Jackson), que promove uma bebida energética batizada Booty Sweat, de tradução impublicável; Jeff Portnoy (Jack Black), que faz todos os personagens de uma franquia cômica sobre uma família obesa e vítima de flatulência grave; Kirk Lazarus (Robert Downey Jr.), australiano ganhador de cinco Oscar, que é visto como um monge gay apaixonado pelo noviço Tobey Maguire no trailer do drama O Beco de Satã, título de insinuação perfeitamente intencional; e Tugg Speedman (Stiller), um astro de ação que cinco vezes seguidas salvou o planeta do superaquecimento com uma metralhadora numa mão e um bebê na outra. Speedman tentou ganhar credibilidade com o dramaSimplesmente Jack, no papel de um deficiente mental, e virou motivo de troça ("Nunca faça um retardado completo", diagnostica o oscarizado Lazarus, comparando o sucesso de Dustin Hoffman em Rain Man ao fracasso de Sean Penn em Uma Lição de Amor). Trovão Tropical, um épico sobre a Guerra do Vietnã em que contracena com os outros três astros, é sua chance de tirar o pé do buraco, e ele não quer deixá-la escapar – nem quando o diretor é destroçado por uma mina (todos acham se tratar de um efeito especial) nem quando, largado na selva, o elenco vira alvo de narcotraficantes. Que, por um desses acasos, assistem a Simplesmente Jack todas as noites, e adoram o filme.
Stiller erra quase tanto quanto acerta – mas é infalível na disposição de andar no fio da navalha. O uso da palavra "retardado" provocou protestos, e a participação de Tom Cruise, talvez o mais controlador superastro de Hollywood, no papel de um chefe de estúdio que vomita torrentes de obscenidades, vem causando choque. A parte maior da comoção, porém, cabe ao Lazarus de Robert Downey Jr. (que, como em Homem de Ferro, deita e rola com mais esta chance de ressurreição profissional). Para interpretar um sargento negro, Lazarus se submete a um procedimento cirúrgico de pigmentação e, mesmo quando não está em cena, insiste em falar como um personagem de A Cabana do Pai Tomás. O chamado blackface – com que atores brancos se disfarçavam de negros para zombar destes – é um dos tabus mais mortificantes da cultura americana, por boas razões. O detalhe que parece escapar às patrulhas (mas não à platéia, que em uma semana já fez de Trovão Tropical um sucesso) é que não é Downey quem pinta o rosto, mas sim o confuso e vaidoso Lazarus. Como em toda comédia realmente demolidora, Stiller acertou mais alvos do que planejava: foi falar do ridículo do mundinho em que vive, e acabou expondo a histeria do mundão que o rodeia.