blog Noblat 8/8
Há um curioso paradoxo em torno da revisão da Lei de Anistia, proposta pelo ministro da Justiça, Tarso Genro: se prevalecesse, na época de votação da lei, em 1979, a proposta do regime militar, a revisão teria hoje lastro jurídico para responsabilizar criminalmente os torturadores, como quer o ministro.
Como se recorda, os militares, receosos de uma revanche por parte dos grupos de esquerda que os haviam enfrentado de armas na mão, queriam excluí-los das benesses da anistia. Ela então só abrangeria os que haviam sido punidos por crimes de opinião.
A oposição, então, foi às ruas, em todo o país, exigir anistia "ampla, geral e irrestrita", que abrangesse tudo, incluindo o que os militares chamavam de "crimes conexos" – ou seja, os excessos, que cada lado só admitia ter sido praticado pelo outro.
Não foi simples conferir caráter irrestrito à anistia. Foi obra de engenharia política, que começou no próprio âmbito da oposição. Leonel Brizola, por exemplo, temia pela proposta inicial do PMDB, que, a seu juízo, o excluiria e a Miguel Arraes, lideranças cujo retorno ele supunha temido pelos cardeais oposicionistas de então (Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Paulo Brossard, entre outros).
Quando se impôs, na trincheira de luta contra o regime, a tese da anistia irrestrita, e o movimento ganhou o apoio das ruas, restou aos militares absorvê-la, sem supor que o tempo inverteria a equação, beneficiando-os. A anistia ampla, geral e irrestrita é agora o trunfo militar para impedir que os torturadores respondam pelos seus crimes. E continua sendo trunfo para manter intocados os que, na esquerda, pegaram em armas – muitos dos quais hoje no primeiro escalão do governo Lula.
Evidentemente que tudo isso é do conhecimento do ministro, que é advogado e dispõe de ampla consultoria para esclarecê-lo no que lhe escapar tecnicamente da matéria. Por que então age assim? Óbvio que o que o move é a política. Há uma guerra interna no PT tendo em vista a sucessão presidencial de 2010.
Tarso é pré-candidato e ambiciona o apoio dos setores mais extremados da esquerda, fatia que ele disputa com Dilma Roussef, que, no passado, envolveu-se com a luta armada. Dilma tem precedência nesse setor, que ele quer, no mínimo, dividir.
Sabe-se também que, no posto que ele ocupa, não faria isso sem o consentimento de seu chefe, o presidente Lula. Supor que um ministro da Justiça fustigaria os militares à revelia de seu chefe, é ingenuidade. E por que Lula, que defende a candidatura Dilma, concordaria, fingindo-se alheio ao assunto?
Eis aí matéria para análise. Dividir para reinar. Um impasse entre nomes do PT acabaria por conferir ao nome de Lula a condição de única saída para manter coesas as forças de esquerda.
A idéia de um terceiro mandato não foi eliminada. Saiu circunstancialmente de pauta, mas encontra amplo apoio na base governista, se essa for a única hipótese de manutenção do poder. Ocorre que há efeitos colaterais perigosos. E o protesto do Comando Militar do Leste – e não apenas do Clube Militar, integrado pelo pessoal da reserva -, é sinal disso. Perigoso sinal.
É, portanto, tática arriscada, pois repõe em cena algo de que há muito não se tinha notícia no ambiente político nacional: manifestações militares. Despertar o "monstro" não parece recomendável. A redemocratização já contabiliza 23 anos, o mais longo período de ausência militar do noticiário político em toda a história republicana brasileira, o que mostra a eficácia política da Lei de Anistia, que não apenas pacificou o país, como tirou de cena os tais bolsões militares radicais a que se referia o general Geisel.
De lá para cá, crises políticas agudas como a do impeachment de Collor e a do mensalão – para citar apenas duas que afetaram diretamente o cargo de Presidente da República, comandante em chefe das Forças Armadas – foram transpostas sem que uma única Ordem do Dia as pontuasse. Coube agora a Tarso Genro, revolvendo desnecessariamente o passado, cutucar a onça com vara curta.
Em Minas, se diz que esperteza quando é muita vira bicho e come o dono. A tradução carioca é na mesma linha: malandro demais se atrapalha. É o que gente sensata dentro do próprio PT está tentando dizer ao ministro.