Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, agosto 08, 2008

Merval Pereira - Conceitos distorcidos

NOVA YORK. Numa das novas atrações de Coney Island, no Brooklin, que pode ser definida como um grande parque de diversões à beira-mar, o artista plástico Steve Powers montou uma denúncia macabra contra as torturas da prisão de Guantánamo, em Cuba, base militar americana onde estão presos centenas de acusados de terrorismo dos ataques de 11 de setembro. Colocando-se uma moedinha, vê-se dentro de uma cela uma cena que reproduz os interrogatórios à base do afogamento, técnica medieval de interrogatório que o governo americano defende que não se trata de tortura. No desenho de Powers, quem está satisfeito com a sessão de tortura à base de água é o personagem Bob Esponja, por razões óbvias.

É dentro desse contexto que as críticas do presidente americano George Bush às violações dos direitos humanos na China, ao mesmo tempo em que o arremedo de tribunal de Guantánamo acaba de condenar Salim Hamdan, ex-motorista de Osama Bin Laden, por “apoio material a atos de terrorismo”, e a resposta do governo chinês de que os direitos humanos e a liberdade são garantidos ao povo “de acordo com a lei”, suscitam reflexões sobre a distorção dos valores democráticos no mundo atual.
Nunca foi tão pertinente a tese do historiador escocês Niall Ferguson, professor da Universidade Harvard, de que a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado.
Outro estudioso do assunto, o cientista político Adam Przeworski, professor da Universidade de Nova York, diz que há uma ligação estreita entre a renda per capita de uma população e a probabilidade de que a democracia prevaleça no país.
Corroborando com essa tese, um ranking da Freedom House, ONG de direitos humanos, coloca os países mais ricos da Europa Ocidental como os de índice máximo de democracia, enquanto entre os países com os índices mais baixos estão os mais pobres da África.
No entanto, daqui até 2050, de acordo com um estudo da Goldman Sachs, a parte da China no PIB mundial vai crescer de 4% para 15%, enquanto a do G-7, os países mais ricos do mundo, vai cair de 57% para 20%.
O “socialismo de mercado” da China, e o avanço econômico de outros países nada democráticos como Egito, Irã ou Vietnã, vai mais na direção da tese de Ferguson do que na de Przeworski.
E a guerra ao terrorismo empreendida pela administração Bush voltou-se contra os próprios ideais democráticos dos Estados Unidos.
Um formidável livro da jornalista Jane Meyer, da “The New Yorker”, intitulado “The dark side” ( “O lado escuro”), mostra como, em resposta aos atentados em 2001, e sob inspiração do vice Dick Cheney, montou-se uma grande operação dentro do governo que, além da invasão do Afeganistão e da guerra do Iraque, teve uma faceta só recentemente revelada, mas que era parte essencial da política oficial de combate ao terror: a tortura como tática de obtenção de informações mais rápidas que ajudassem no trabalho de inteligência militar.
Foi apenas quando as fotos ultrajantes dos soldados americanos debochando dos prisioneiros na prisão Abu Ghraib, em Bagdá, foram reveladas ao mundo que se conheceram os horrores do tratamento dado pelos Estados Unidos a seus prisioneiros de guerra.
Mas a rejeição oficial aos maus-tratos não corresponde à verdade, segundo o bem documenta do livro de Mayer. O simulacro de julgamento que começou em Guantánamo, por exemplo, é um avanço devido às pressões dos movimentos de direitos humanos e de juízes, políticos e jornalistas que começaram a denunciar a política oficial de prender suspeitos de terrorismo indefinidamente sem julgamento.
Somente em junho de 2004, por duas decisões da Suprema Corte, a lei americana passou a ser válida também para o território de Guantánamo, e os prisioneiros passaram a ter o direito de serem representados por advogados diante de um “julgador neutro”. O motorista de Bin Laden, que, segundo o livro, é tratado pelo governo como uma peça “insignificante”, mas foi julgado como se fosse membro importante do grupo terrorista, terá direito de recorrer, mas foi condenado por um júri militar, segundo regras próprias dos militares.
O livro de Jane Mayer tem uma passagem que mostra bem como a distorção das palavras pode ser a base de uma ação do governo para se defender, tanto quando se trata de tortura quanto, no caso chinês, de direitos humanos “garantidos por lei”.
Ela conta a história de Dan Levin, um brilhante advogado formado com louvor em Harvard e Chicago que, ao assumir o posto de principal conselheiro legal do presidente no Office of Legal Counsel, o segundo cargo na hierarquia do Ministério da Justiça dos Estados Unidos, viu-se diante da tarefa de justificar legalmente os interrogatórios, descaracterizando a tortura.
Seu trabalho substituiria outro, feito pelo também advogado John Yoo, que ampliara tanto o conceito de tortura que praticamente a legitimara, escandalizando a opinião pública. Levin dedicou-se a tentar encontrar nuances semânticas entre palavras como “dor” ou “sofrimento”, para definir até onde os interrogatórios poderiam ir.
Tão angustiado ficou que decidiu se submeter aos mesmos tratamentos dados aos presos de Guantánamo, para avaliar na própria pele até onde poderia chegar “o sofrimento” humano. Na tentativa de se equilibrar entre a pressão dos superiores e seus princípios morais, Levin chegou a conclusões esquizofrênicas, onde a técnica de afogamento poderia ser utilizada legalmente se fosse estritamente controlada no tempo.
Um retrato patético de um governo tão esquizofrênico quando Levin, que colocou em risco os valores da maior democracia do mundo para defender a democracia.

E-mail para esta coluna: merval@oglobo.com.br

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