NOVA YORK. Numa das novas atrações de Coney Island, no Brooklin, que pode ser definida como um grande parque de diversões à beira-mar, o artista plástico Steve Powers montou uma denúncia macabra contra as torturas da prisão de Guantánamo, em Cuba, base militar americana onde estão presos centenas de acusados de terrorismo dos ataques de 11 de setembro. Colocando-se uma moedinha, vê-se dentro de uma cela uma cena que reproduz os interrogatórios à base do afogamento, técnica medieval de interrogatório que o governo americano defende que não se trata de tortura. No desenho de Powers, quem está satisfeito com a sessão de tortura à base de água é o personagem Bob Esponja, por razões óbvias.
É dentro desse contexto que as críticas do presidente americano George Bush às violações dos direitos humanos na China, ao mesmo tempo em que o arremedo de tribunal de Guantánamo acaba de condenar Salim Hamdan, ex-motorista de Osama Bin Laden, por “apoio material a atos de terrorismo”, e a resposta do governo chinês de que os direitos humanos e a liberdade são garantidos ao povo “de acordo com a lei”, suscitam reflexões sobre a distorção dos valores democráticos no mundo atual.
Nunca foi tão pertinente a tese do historiador escocês Niall Ferguson, professor da Universidade Harvard, de que a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado.
Outro estudioso do assunto, o cientista político Adam Przeworski, professor da Universidade de Nova York, diz que há uma ligação estreita entre a renda per capita de uma população e a probabilidade de que a democracia prevaleça no país.
Corroborando com essa tese, um ranking da Freedom House, ONG de direitos humanos, coloca os países mais ricos da Europa Ocidental como os de índice máximo de democracia, enquanto entre os países com os índices mais baixos estão os mais pobres da África.
No entanto, daqui até 2050, de acordo com um estudo da Goldman Sachs, a parte da China no PIB mundial vai crescer de 4% para 15%, enquanto a do G-7, os países mais ricos do mundo, vai cair de 57% para 20%.
O “socialismo de mercado” da China, e o avanço econômico de outros países nada democráticos como Egito, Irã ou Vietnã, vai mais na direção da tese de Ferguson do que na de Przeworski.
E a guerra ao terrorismo empreendida pela administração Bush voltou-se contra os próprios ideais democráticos dos Estados Unidos.
Um formidável livro da jornalista Jane Meyer, da “The New Yorker”, intitulado “The dark side” ( “O lado escuro”), mostra como, em resposta aos atentados em 2001, e sob inspiração do vice Dick Cheney, montou-se uma grande operação dentro do governo que, além da invasão do Afeganistão e da guerra do Iraque, teve uma faceta só recentemente revelada, mas que era parte essencial da política oficial de combate ao terror: a tortura como tática de obtenção de informações mais rápidas que ajudassem no trabalho de inteligência militar.
Foi apenas quando as fotos ultrajantes dos soldados americanos debochando dos prisioneiros na prisão Abu Ghraib, em Bagdá, foram reveladas ao mundo que se conheceram os horrores do tratamento dado pelos Estados Unidos a seus prisioneiros de guerra.
Mas a rejeição oficial aos maus-tratos não corresponde à verdade, segundo o bem documenta do livro de Mayer. O simulacro de julgamento que começou em Guantánamo, por exemplo, é um avanço devido às pressões dos movimentos de direitos humanos e de juízes, políticos e jornalistas que começaram a denunciar a política oficial de prender suspeitos de terrorismo indefinidamente sem julgamento.
Somente em junho de 2004, por duas decisões da Suprema Corte, a lei americana passou a ser válida também para o território de Guantánamo, e os prisioneiros passaram a ter o direito de serem representados por advogados diante de um “julgador neutro”. O motorista de Bin Laden, que, segundo o livro, é tratado pelo governo como uma peça “insignificante”, mas foi julgado como se fosse membro importante do grupo terrorista, terá direito de recorrer, mas foi condenado por um júri militar, segundo regras próprias dos militares.
O livro de Jane Mayer tem uma passagem que mostra bem como a distorção das palavras pode ser a base de uma ação do governo para se defender, tanto quando se trata de tortura quanto, no caso chinês, de direitos humanos “garantidos por lei”.
Ela conta a história de Dan Levin, um brilhante advogado formado com louvor em Harvard e Chicago que, ao assumir o posto de principal conselheiro legal do presidente no Office of Legal Counsel, o segundo cargo na hierarquia do Ministério da Justiça dos Estados Unidos, viu-se diante da tarefa de justificar legalmente os interrogatórios, descaracterizando a tortura.
Seu trabalho substituiria outro, feito pelo também advogado John Yoo, que ampliara tanto o conceito de tortura que praticamente a legitimara, escandalizando a opinião pública. Levin dedicou-se a tentar encontrar nuances semânticas entre palavras como “dor” ou “sofrimento”, para definir até onde os interrogatórios poderiam ir.
Tão angustiado ficou que decidiu se submeter aos mesmos tratamentos dados aos presos de Guantánamo, para avaliar na própria pele até onde poderia chegar “o sofrimento” humano. Na tentativa de se equilibrar entre a pressão dos superiores e seus princípios morais, Levin chegou a conclusões esquizofrênicas, onde a técnica de afogamento poderia ser utilizada legalmente se fosse estritamente controlada no tempo.
Um retrato patético de um governo tão esquizofrênico quando Levin, que colocou em risco os valores da maior democracia do mundo para defender a democracia.
E-mail para esta coluna: merval@oglobo.com.br
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2008
(5781)
-
▼
agosto
(540)
- DRAUZIO VARELLA Fumantes passivos
- FERREIRA GULLAR
- DANUZA LEÃO
- Petropopulismo
- Demétrio Magnoli,Fragmentos de socialismo
- A força da gente Miriam Leitão
- O urso não deve ser provocado LUIZ FELIPE LAMPREIA
- O troco republicano Merval Pereira
- A solas con Néstor Kirchner Por Joaquín Morales Solá
- El cambio que quieren los Kirchner Por Mariano Gr...
- João Ubaldo Ribeiro
- Daniel Piza
- DORA KRAMER Polícia de boa vizinhança
- Boas notícias e desafios para o Brasil Alberto Ta...
- ''A riqueza do pré-sal depende do tamanho dos inve...
- A maldição do petróleo Maílson da Nóbrega
- A química ruim de Yunus Suely Caldas*
- McCainomics Celso Ming
- Os estragos do câmbio
- Privatização em São Paulo
- Linha direta entre Lula e FHC evitou pedido de imp...
- Augusto Nunes-SETE DIAS
- INVASÃO DE PRIVACIDADE
- China: medalhas e exportações
- Custo do pré-sal pode passar de US$ 1 tri
- RUY CASTRO Do noticiário
- Miriam Leitão Sonho americano
- Merval Pereira - Uma disputa estratégica
- Celso Ming,Melhor do que o previsto
- Dora Kramer Virtudes democráticas
- São Paulo acessível Mauro Chaves
- Meta fiscal versus meta de inflação
- O risco Argentina
- Preconceito no caminho de Obama
- VEJA Carta ao leitor
- VEJA Entrevista: James Roberts
- Diogo Mainardi O Eddie Murphy político
- Lya Luft O que valem as medalhas?
- Radar
- Gustavo Ioschpe
- J.R. Guzzo
- MILLÔR
- Especial Dilema eterno da humanidade: perdão ou ...
- A desforra via internet
- Memória Olavo Setubal
- Os efeitos da insônia na saúde dos adolescentes
- Traje motorizado permite a paraplégicos andar
- Tecnologia O Brasil ficou para trás em inovação
- EUA Barack Obama é aclamado candidato à Presidência
- Aborto A interrupção da gravidez de anencéfalos ...
- Petróleo O início da exploração das reservas do ...
- Espionagem A prova de que Gilmar Mendes foi gram...
- Tomara que ela acerte
- As dicas dos campeões do vestibular
- O brasileiro adere em massa às motocicletas
- O rei do chocolate
- Os esquecidos da bossa nova
- Hellboy II, de Guillermo del Toro
- Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas
- Livros Dois autores israelenses contemporâneos
- O momento de Beatriz Milhazes
- VEJA Recomenda
- A reforma política de Lula editorial O Estado de ...
- Índio não quer mais só apito - João Mellão Neto
- Celso Ming - Cadê a recessão?
- Dora Kramer - Trocando em miúdos
- Míriam Leitão - A conta do estouro
- Merval Pereira - Sem novidades na AL (O Globo)
- Clipping 29/08/2008
- OS bons selvagens exploram garimpo ilegal? Estou c...
- JOÊNIA MORENA, JOÊNIA, VOCÊ SE PINTOU...
- clipping de 28/08/20008
- Resultados fiscais e reforma contábil editorial O...
- Perigosa recaída O GLOBO EDITORIAL
- Outro mundo EDITORIAL O Globo
- A soberania em juízo editorial O Estado de S. Paulo
- A despolitização da tortura
- Valdo Cruz - Tentações
- Míriam Leitão - Ajuste de contas
- Merval Pereira - Razão x emoção
- Dora Kramer - Uso do cachimbo
- Clóvis Rossi - Eleição x coroação
- Celso Ming - Despencou
- Alberto Tamer - Depois da festa, a economia
- RAPOSA SERRA DO SOL: ENTRE A REALIDADE E A MISTIFI...
- Twenty-Two Years in Castro's Gulag
- Míriam Leitão - Hora do ataque
- Merval Pereira - A raça como pano de fundo
- Dora Kramer - Desde a tenra infância
- Celso Ming - Até onde vai este rali
- Mais a sério- Ruy Castro
- Garibaldi foi à forra- Villas-Bôas Corrêa
- Porque Obama parece vulnerável
- Pré-sal trouxe até agora muito calor e pouca luz
- O Congresso na 'extrema-unção' editorial O Estado...
- Mais confusão no pré-sal editorial O Estado de S....
- Clipping do dia 27/08/2008
- Clipping do dia 26/08/2008
- Ruim é o gasto, não a conta
- MIRIAM LEITÃO - O mal já feito
-
▼
agosto
(540)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA