Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 09, 2008

Hutongs: uma herança da velha China

Olimpíada | Vida Chinesa
A verdade inconveniente

Os hutongs de Pequim enternecem
os corações ocidentais. Mas eles são 
uma chaga na capital chinesa


Mario Sabino, de Pequim

Fotos Adam Dean / WPM
Bonito por fora, feio por dentro
Os telhados cinzentos de um hutong, vistos da Torre do Sino. Nas bordas turísticas, a vida simples que enche os olhos de europeus e americanos, com casas antigas restauradas(acima, um exemplo). Eles não vêem a indignidade que grassa no interior desses aglomerados, com pessoas obrigadas a permanecer fora de casa, porque casa não há. São compartimentos (abaixo)

Há um equívoco reproduzido à exaustão no noticiário: o de que a miséria de centenas de milhões é um problema da nova China. Não é. Trata-se de um problema da velha China – a nação dos imperadores sucedida pela da vanguarda do atraso maoísta – que a nova China tenta eliminar. E o faz com velocidade jamais vista, e o faz com objetividade de causar inveja nas favelas cariocas do Complexo do Alemão. Não custa repetir: com a abertura econômica, 400 milhões de pessoas foram tiradas do cadafalso da pobreza absoluta. Desde então, o mundo também viu nascer e multiplicar-se uma classe média hoje na casa de 300 milhões de consumidores sôfregos. A história de "nunca antes" está acontecendo de verdade aqui, e não aí, eis um resumo possível. No plano político, o país permanece uma ditadura – chinesa. A característica da ditadura chinesa é passar com trator sobre tudo o que lhe parece inconveniente, sem formalidades. Trator de aço, não de clichê, o que, independentemente da valoração atribuída, ajuda a acelerar determinados processos urbanísticos. Em Pequim, um dos inconvenientes tem o nome de hutong – palavra da língua manchu cujo significado é "ruas estreitas".

Esses aglomerados de vielas começaram a ser construídos no correr da dinastia Yuan, entre o fim do século XIII e o início do XIV, para servir de endereço a aristocratas e funcionários da burocracia imperial. As casas originais dos hutongs chamavam-se siheyuans. Elas podiam ser mais ou menos luxuosas, mas tinham sempre um pátio interno, ao redor do qual habitava mais de um segmento de uma mesma família. Aos empregados, eram reservados quartos próximos à entrada, numa inversão da planta atual dos apartamentos da classe média de qualquer latitude. Alguns siheyuans foram restaurados e, hoje, funcionam como bons restaurantes e agradáveis pensões para turistas. Suas paredes avermelhadas, seus pórticos despojados e seus telhados cinzentos causam no visitante aquele efeito tão desejado quanto lucrativo de "Sim, estou em Pequim!".

Com o fim do império e as reviravoltas seguintes, a maioria dessas casas seculares foi tomada por trabalhadores. Hoje, nas vielas externas dos hutongs, o comércio miúdo e as quitandas, somados ao vaivém de bicicletas e ao clima de interior, com pessoas sentadas nas soleiras para tomar a fresca, enternecem os corações ocidentais – "Ah, a vida em comunidade"; "Ah, é possível ser feliz de um modo simples". Ao enternecimento, sobrevém, em geral, a indignação – "Oh, é um absurdo o governo chinês querer destruir o palco da cultura popular de Pequim"; "Oh, coitada dessa gente que está para ser confinada em apartamentos, depois de perder suas ruazinhas, seu cotidiano". Porém...

...Esses corações enternecidos não adentram o coração dos hutongs. Lá, distante das bordas turísticas, as cavernas pré-históricas parecem ser um conforto pequeno-burguês. Nos hutongs contíguos à Torre do Sino, a apenas 2 quilômetros da Cidade Proibida, as vielas interiores vão se restringindo a corredores, e depois a passagens que não ultrapassam 60 centímetros de largura. E os siheyuans, outrora senhoris, dividem-se e subdividem-se, para outra vez repartir-se em dimensões impensáveis ao convívio digno. Um senhor, que assistia à nossa visita da janela do que parecia ser uma cabine feita de tapumes, nos contou que aquele era seu lar. A não mais de 4 metros quadrados reduzia-se o arremedo de privacidade atulhado de objetos sem memória. A sua, continuou, era ínfima parte da casa de uma princesa, onde havia décadas se espremiam 107 famílias – como todas as vizinhas, sem banheiros, a não ser os comunitários, agora reformados por causa da Olimpíada. Assim como os cidadãos dos hutongs nos arredores da Torre do Sino, milhares de outros vivem de tal forma na capital chinesa, mais fora do que dentro de casa, nas ruas e nos corredores exíguos de tais aglomerados, não tanto porque gostem da existência comunitária, mas porque casas não há. São compartimentos.

Os hutongs não produziram, não produzem, nenhum romance realista e muito menos uma realidade de romance. Da contabilidade variável que as autoridades se recusam a precisar, conclui-se que, em meados da década de 40, existiam 3 000 deles em Pequim. Em 1980, esse número havia caído para 1 300 – dos quais cerca de 400 ainda sobrevivem em sua abjeção. Que o trator da China capitalista execute até o fim o dever não cumprido da China comunista. Preserve-se o que deve ser preservado, e o resto vá ao chão. Já os ocidentais enternecidos, que cantem, se houver, as respectivas versões nacionais de saudosa maloca, maloca querida.

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