Olimpíada | Vida Chinesa
Três mulheres, três países
Da guerrilheira que lutou com os comunistas à jovem
que mantém um estilo de vida ocidental, a história
recente da China, segundo quem a viveu – e a vive
Thaís Oyama, de Pequim
Fotos Adam Dean/WPN |
Avó, mãe e filha You Zhi Ping, Wang Jian Sheng e Ru Guo: o último século da China visto por uma família |
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Na extraordinária história da China, a dimensão dos acontecimentos só é superada pela velocidade com que eles se sucedem. Em menos de 100 anos, o país deixou de ser uma sociedade arcaica para se transformar numa potência global. Enfrentou guerras, invasões estrangeiras, fomes coletivas e quatro revoluções: duas verdadeiras (a republicana e a comunista), uma inventada (a Cultural) e a mais recente, ainda em curso (a econômica). A grande história do último século chinês é também a pequena história dos que a viveram. Nas páginas seguintes, três mulheres de uma mesma família e diferentes gerações contam as suas.
You Zhi Ping, de 86 anos, Wang Jian Sheng, de 53, e Ru Guo, de 24, são avó, mãe e filha. Suas antepassadas viviam num país onde era obrigatório as mulheres adotarem o sobrenome do marido e se mantinha o hábito bárbaro de quebrar e enfaixar os pés das meninas, para mantê-los pequenos para sempre, parte da tradição de aviltamento feminino que durou mais de 1 000 anos e que os chineses consideravam "erótica". Depois da revolução de 1949, as mulheres ganharam espaço na China – o que, até a morte de Mao Tsé-tung, significava também sofrer as mesmas agruras dos homens. You Zhi Ping, militar reformada, lutou na guerrilha comunista. Wang Jian Sheng, médica, foi mandada a uma fábrica para trabalhar como operária depois que o pai passou a ser perseguido pela Revolução Cultural. A jovem Ru Guo, estudante de pós-graduação que apenas inicia a sua história, nasceu oito anos depois que a China começou a avançar com seus passos de gigante no mundo capitalista.
"Eu entrei para a guerrilha comunista porque ela era a melhor opção para mim. Meus pais eram lavradores em Jiangsu, uma província no leste da China, e morreram muito cedo. Em 1944, eu havia acabado de me casar e a guerra começou a ficar muito perto de nós. Então, eu e meu marido achamos que era melhor sair para lutar do que ficar em casa e ser mortos de qualquer jeito. Foi um período muito duro. Passávamos o tempo todo andando na mata, no escuro, sem nenhuma luz. Quando caíamos na água, tínhamos de nos levantar e continuar a andar, andar e andar. Lá em cima estavam os aviões. Embaixo, os canhões. Quando éramos atacados, tínhamos de passar o dia escondidos. Saíamos à noite só para contar os mortos espalhados pelo chão. Como eu e meu marido pertencíamos a tropas diferentes, passávamos meses e meses sem notícias um do outro. Naquele tempo, para nos comunicarmos, tínhamos de escrever uma mensagem bem curta em um papelzinho. O mensageiro levava dias, às vezes meses, para entregar. Na primavera de 1949, minha tropa libertou a cidade de Taizhou (na província de Jiangsu). Com o triunfo da revolução, as coisas ficaram muito melhores. No tempo da guerrilha, levávamos nossa vida nas costas: um cobertor e um par de sapatos. E não tínhamos nem lugar para dormir. Depois da revolução, eu podia até sentar para trabalhar! Como integrante da Brigada Municipal das Forças Armadas Comunistas de Pequim, fiquei responsável pelo departamento pessoal. Tive três filhos, tudo estava bem, a família toda vivia unida. Mas, nos anos 60, começou um tempo muito difícil e de muita privação para todos nós. Perdi dois tios de má nutrição e minha irmã também quase morreu. Foi um período em que até os ratos da China passaram fome. Então, quando olho o país hoje, fico muito satisfeita. Como está bonita Pequim hoje! E como está bonita Jiangsu também!" |
"Até os 9 anos de idade, tive uma infância feliz. Mas, quando eu tinha 10 anos, começou a Revolução Cultural e meu pai foi acusado de traidor. Eu me lembro do dia: 23 de janeiro de 1969. Ele havia ido a uma grande reunião de massas e, quando voltou para casa, percebi que estava desarrumado e que o seu casaco só tinha um botão – todos os outros haviam sido arrancados pelas pessoas que o criticaram. A partir daí, minha vida mudou. Quando chegava um chefe de estado do exterior, as crianças eram chamadas para recebê-lo com festa na rua. Como meu pai havia sido criticado, eu não podia participar. Ele ficou confinado por um ano, antes de ser mandado para o extremo norte da China para trabalhar no campo, onde permaneceu por mais seis. Quando terminei a escola secundária, era o governo que decidia para onde iriam os jovens, se para a universidade ou para o trabalho em lavouras e na indústria. O que definia o destino de cada um era a qualificação política dos pais. Eu fui mandada para trabalhar como operária em uma indústria química. Fiquei lá por sete anos. Só no ano seguinte ao da morte de Mao, 1977, fui autorizada a fazer vestibular para a faculdade de medicina. Como especialista em medicina tradicional chinesa, fui convidada em 1990 a dar aulas na (antiga) Iugoslávia. Foi a primeira vez que saí da China. Naquele tempo, os chineses não viajavam muito e era freqüente os estrangeiros acharem que eu era japonesa. Isso me deixava bastante chateada. Hoje, não. Tenho certeza de que, para qualquer lugar que eu viajar, todos saberão que eu sou chinesa." |
"Eu me chamo Guo, mas meu nome em inglês é Grace. Todas as minhas amigas têm um nome em inglês. Muitas vezes, ele é escolhido por nossos professores, com base no nosso nome chinês. O meu eu mesma escolhi – por causa da letra inicial, "g" também, e do significado, que é "graça", "elegância". Ter um nome inglês é muito prático quando se trabalha, como eu, em uma companhia internacional. Sou formada em inglês e já trabalhei numa empresa americana. Atualmente, estou estagiando em uma ONG alemã e faço pós-graduação em direito econômico. No futuro, talvez vá morar fora por um tempo. Tenho vários amigos estudando no exterior. Como muitas crianças na China, não fui criada por meus pais, mas pelos meus avós. Cresci ouvindo as histórias deles – quando meu avô ia me buscar na escola, vínhamos cantando canções revolucionárias. Hoje, moro num alojamento da universidade. Juntando o que recebo com meu estágio, mais uma mesada que meus pais me dão, ganho 1 000 iuanes por mês (o equivalente a 250 reais). Gasto a maior parte em roupas. Gosto de música estrangeira, mas não tenho uma banda favorita. O que eu adoro mesmo são os seriados americanos: Prison Break, Lost, Will & Grace... Nós conseguimos baixar na internet os últimos episódios assim que eles são exibidos, e quatro horas depois alguém já os traduziu. A China pode ter cometido alguns erros nos últimos 100 anos, mas tenho orgulho de sua tradição. Quando fomos escolhidos anfitriões da Olimpíada, fui para a rua com os meus amigos comemorar. Será uma oportunidade de o mundo conhecer a verdadeira China." |