A nova revolução cultural
A China gastou 40 bilhões de dólares para maquiar sua paisagem urbana e fazer estádios estupendos, mas a grande obra mesmo é a de engenharia social para reformar o coração e a mente da população
Thaís Oyama, de Pequim
Mark Ralston/AFP |
SOB SIGILO Bailarinas deixam o Ninho de Pássaro depois de ensaiar a coreografia que será apresentada na cerimônia, até agora secreta, de abertura dos Jogos. A direção será do cineasta chinês Zhang Yimou |
Para realizar o que pretende ser a mais perfeita, a mais cara e a mais inesquecível Olimpíada de todos os tempos, a China, literalmente, moveu montanhas. Fábricas foram transferidas e bairros inteiros, derrubados. Dezesseis centros esportivos brotaram do chão em prazo recorde, 87 quilômetros de trilhos de metrô foram estendidos e um exército de especialistas foi escalado para trabalhar dia e noite na hercúlea tarefa de limpar o ar de Pequim, cidade que registra 1 000 novos veículos por dia. Não contentes em submeter a capital do país a uma plástica que mudou suas feições, as autoridades empenharam-se em reformar também os pequineses. Além de conclamá-los a não cuspir nas ruas, não praguejar e mesmo a não pendurar roupas na sacada dos apartamentos, alguns distritos da capital (ela tem dezoito ao todo) chegaram a pedir aos aposentados que evitassem sair de casa para "dar mais lugar aos visitantes". Em poucos países campanhas como essas seriam recebidas com a naturalidade com que foram na China. Além da relação peculiar que os chineses têm com as autoridades, ajuda a explicar a adesão aos mandamentos o fato de o país estar ansioso por integrar-se ao mundo – rompendo, assim, com a tradição isolacionista que o regime comunista só acentuou. É isso que a Olimpíada representa para os chineses: um bilhete de entrada na sociedade moderna e, sobretudo, o reconhecimento do desenvolvimento de uma nação que, a despeito de toda a sua grandeza histórica, permanecia invisível antes da guinada econômica de trinta anos atrás.
Em Pequim, o entusiasmo dos moradores com a Olimpíada é tamanho que tudo o que tem a ver com o acontecimento ganha imediatamente um carimbo de prioritário e intocável. A apresentação de crachás olímpicos – em órgãos públicos, aeroportos ou hotéis – abre portas e estende tapetes vermelhos ao seu portador. Nas principais avenidas da capital, ninguém reclama do fato de as autoridades terem reservado pistas exclusivas para os carros a serviço dos Jogos – ainda que, ao menos por enquanto, as pistas estejam às moscas e o trânsito de Pequim continue infernal. Nem a decisão do governo de transferir 300.000 famílias, obrigadas a ceder espaço para as instalações olímpicas ou para as novas construções, provocou protestos que não fossem isolados. Pelo contrário: a comerciante Yu Pingju, por exemplo, que atraiu multidões diante de sua casa ao recusar-se a abandoná-la mesmo depois de todos os seus vizinhos o terem feito, foi chamada de "egoísta" por muita gente. O fato de sua família morar no local há sessenta anos e tirar de lá o seu sustento – vendendo amendoim e castanha torrada numa banca improvisada em frente da casa – não era, na opinião dos críticos de Yu Pingju, motivo suficiente para ela "deixar de pensar no país" (ao ser informada de que seria retirada à força, a comerciante pendurou fotos de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping na fachada, mas as imagens dos velhos líderes chineses não a socorreram e Yu Pingju, juntamente com outros treze membros da sua família, foi transferida do local há duas semanas).
Reuters |
PALMAS PARA ELE O novo trem que liga o aeroporto à região central: fotografado e aplaudido por passageiros na viagem inaugural; abaixo, plantão de voluntários no terminal 3 |
A cada vez que o governo baixa uma medida restritiva em nome da Olimpíada, os jornais chineses, todos pertencentes ao governo, trazem resultados de pesquisas mostrando que, "apesar de alguns inconvenientes", a maior parte da população (nunca menos do que 95%) apóia as medidas. Talvez seja a primeira vez, afinal, que jornais comunistas publicam a verdade. Desde o último dia 20, com o objetivo de diminuir os índices de poluição da cidade, 8 000 canteiros de obra foram paralisados em Pequim e 150 fábricas foram obrigadas a suspender suas atividades. Antes disso, o governo já havia transferido 200 indústrias poluidoras da capital para os dezenove parques industriais criados no arredores da cidade. Algumas seguiram para mais longe, como a gigantesca Shougang, um complexo siderúrgico que produz 8 milhões de toneladas de aço por ano e que ficava a apenas 17 quilômetros da Praça da Paz Celestial. A transferência dos setores mais poluentes da Shougang para a província de Hebei, ao sul de Pequim, foi um processo tão complexo que o governo criou uma secretaria – a Secretaria de Transferência de Shougang – só para cuidar da tarefa.
Uma das medidas tomadas com o objetivo de despoluir a cidade, e que mais diretamente afetou os pequineses, foi o rodízio de placas pares e ímpares, que, diariamente, proíbe 2 milhões de carros de sair às ruas. Não houve protesto nem cara feia: se é pela Olimpíada, é pelo bem da China – é o que se dizia. A uma semana do início da competição, a névoa de sujeira parece ceder, o que aumenta o entusiasmo das pessoas. Não, o entusiasmo pela Olimpíada não é uma peça de propaganda comunista. No ano passado, o governo abriu inscrições para estudantes universitários que quisessem trabalhar como voluntários nos Jogos. Nas primeiras 48 horas, 40 000 pessoas se alistaram. Mais de 1 milhão de voluntários se inscreveram e 500 000 foram selecionados. Desses, 100 000 estão trabalhando diretamente na organização dos Jogos. Eles podem ser vistos desfilando orgulhosos nas ruas com seu uniforme azul e amarelo e o crachá olímpico pendurado no peito. Consideram-se pessoas de sorte: "Sei que, infelizmente, nem todos podem ser voluntários", diz Xie Yonchen, de 20 anos, estudante da Universidade de Aeronáutica e Astronáutica de Pequim. "Mas eu me sinto feliz por ajudar o meu país neste momento tão importante e também por representar todos os jovens que gostariam de estar aqui." "Aqui", no caso de Yonchen, significa uma mesa no terminal novo do Aeroporto Internacional de Pequim, atrás da qual ele e outros quatro voluntários permanecem – de pé, com as mãos cruzadas na frente do corpo – durante dois turnos diários de duas horas. A função deles é orientar e dar informações aos visitantes e membros das delegações que desembarcam no local. Mas, como apenas no terminal trabalham 3 000 voluntários, e não há tantos visitantes assim precisando de ajuda, os universitários acabam sem ter muito que fazer. Por isso, ficam muito satisfeitos quando alguém lhes dirige uma pergunta – principalmente se esse alguém for um atleta ou um participante de delegação estrangeira vindo ao país para O Acontecimento – e não mais um passageiro comum perguntando onde fica o toalete.
Peter Parks/AFP |
A poucos dias do início dos Jogos, a poluição de Pequim preocupa os organizadores |
A melhoria do sistema de transporte público, das rodovias e da aviação no país foi um dos compromissos que o governo chinês assumiu para sediar a Olimpíada. Garantir a liberdade de imprensa durante a sua realização, também. Mas isso se está revelando um pouco difícil. Na semana passada, um representante do comitê organizador do governo, em entrevista coletiva, assumiu candidamente que, sim, a China ofereceria aos jornalistas apenas o acesso "suficiente" à internet. A grita foi geral, mas não é preciso exagerar na estridência. A censura à rede é uma das coisas mais malfeitas da China. Se não é possível acessar o site da seita Falun Gong (alguém se interessa?), proibida aqui, os endereços dos principais jornais e revistas do mundo, muitos deles críticos do regime chinês, não apresentam nenhum problema. O controle total sobre a internet é uma batalha que o governo chinês já perdeu.
Há um outro motivo pelo qual os chineses, e não só os da capital, estão adorando sediar a Olimpíada: eles estão se beneficiando enormemente da festa – que, se não é responsável por todas as melhorias na infra-estrutura na China, acelerou-as bastante. Privados que foram por tanto tempo dos confortos modernos, os chineses se encantam com cada novidade. Quem observasse, no último dia 19, o tumulto formado diante de alguns guichês do Aeroporto Internacional de Pequim pensaria que lá estavam sendo vendidos ingressos para algum show de rock. Não: eram simplesmente bilhetes para a viagem inaugural do trem que liga o aeroporto ao centro da cidade. Quando a composição chegou à plataforma, as centenas de passageiros que a aguardavam – e também os próprios funcionários do local – sacaram o celular para fotografá-la, enquanto outros batiam palmas. Observando passageiros no trem, era evidente que muitos haviam ido até o aeroporto apenas para fazer a viagem de volta.
Goh Chai Hin/AFP |
HERÓI NACIONAL |
A China corre freneticamente em busca do tempo perdido, mas é certo que os seus anos de isolamento deixaram seqüelas. Algumas experiências e conceitos ocidentais são tão pouco familiares para os chineses quanto as crateras da Lua. Isso vale tanto para banheiros, uma comodidade recente no país, quanto para história da arte. VEJA pôde constatar o fenômeno de perto quando, ao entrevistar integrantes do Departamento de Infra-Estrutura de Pequim, foi convidada a assistir a um documentário de quarenta minutos sobre o tema (banheiros, não história da arte). Há pouquíssimo tempo, a cidade erradicou os sanitários públicos tradicionais (um buraco no chão, sem nenhuma coisa parecida com paredes em torno), com a construção e a reforma de 5 000 toaletes. Entre outras minúcias, o filme exibido a VEJA incluía uma cena em que aparecia uma réplica do vaso sanitário usado pelo último imperador – e uma animação mostrando COMO o soberano o utilizava. Os três funcionários do Departamento de Infra-Estrutura que atenderam a reportagem e os quatro operadores responsáveis pela projeção do filme (o downsizing não chegou à China), olhos pregados na tela, não pareceriam mais deleitados se estivessem acompanhando uma história dirigida por Zhang Yimou. O filme, intitulado Os Banheiros de Pequim, terminava apresentando o artista francês Marcel Duchamp e uma de suas obras mais famosas: Fonte. Para os funcionários do Departamento de Infra-Estrutura, o mictório invertido de Duchamp, símbolo da dessacralização da arte, era "uma prova da importância dos banheiros para os artistas".
Fotos Teh Eng Koon/AFP e Imaginechine |
CAMPANHA CIVILIZATÓRIA |
Hoje, com seu crescimento anual de dois dígitos, seu PIB de 2,7 trilhões de dólares e um peso crescente na economia mundial, a China pode estar nadando em dinheiro, mas também quer respeito. Ser anfitriã dos Jogos Olímpicos não deixa de ter um sabor de acerto de contas com o passado de colônia e, em mais de um aspecto, prostíbulo do Ocidente. Um grande número de medalhas de ouro, é claro, seria a coroação. Ou melhor, o maior número de medalhas de ouro, à frente dos Estados Unidos. Desde que Pequim foi confirmada sede dos Jogos, em 2001, o país mais do que dobrou seu orçamento para os esportes. Parte do dinheiro foi usada na reforma e equipagem dos 3 000 ginásios mantidos pelo governo. A finalidade é transformar 400 000 crianças em futuros campeões olímpicos, como Liu Xiang. Ele foi convertido em herói nacional por ter conquistado a medalha de ouro nos 110 metros com barreiras em Atenas. Foi o primeiro a conseguir uma vitória no atletismo – modalidade que requer um tipo de força que, acreditava-se, não era própria dos chineses. A China – que no século XX foi subjugada por invasores estrangeiros, viveu a guerra, o totalitarismo e a fome – já superou mais barreiras do que Liu Xiang. E, agora, prepara-se para se mostrar ao mundo em sua melhor forma.