Há 18 meses, quando se iniciou o processo de elaboração da frustrada Constituição, Chávez obteve da dócil Assembléia autorização para governar por decreto - a chamada Lei Habilitante. Surpreendentemente, fez uso relativamente moderado desse instrumento de exceção, tendo abusado apenas quando pretendeu transformar o serviço de inteligência num instrumento de controle social à maneira da Gestapo e da KGB. Tamanha foi a reação dos venezuelanos que Chávez revogou o malsinado decreto.
Mas no dia 1º deste mês, último dia de vigência da Lei Habilitante, o caudilho mostrou por que exigiu poderes especiais para legislar: baixou 26 decretos, a maioria reproduzindo - e, às vezes, tornando mais radicais - dispositivos contidos na Constituição rejeitada no referendo. "A Lei Habilitante é uma emboscada para passar de contrabando a reforma constitucional que o povo recusou", disse Luiz Miquilena, ex-mentor político de Hugo Chávez, de quem foi ministro do Interior. "A única coisa que Hugo Chávez não pode fazer pela Lei Habilitante é perpetuar-se no poder com reeleição indefinida."
Em qualquer país governado pelas leis, não se admite que matéria rejeitada em referendo entre no ordenamento jurídico por meio de decreto. Na Venezuela de Chávez, não apenas isso é possível, como ele chegou ao cúmulo de mandar publicar na Gaceta Oficial, no último dia de vigência da Lei Habilitante, apenas as emendas dos decretos. Só nas edições seguintes a população tomou conhecimento do texto completo de alguns decretos - outros ainda serão publicados, o que significa que os diplomas legais não existem, embora vigorem os seus resumos. Nem nos momentos mais negros do regime soviético chegou-se a esse nível de desfaçatez e de desprezo pelas formalidades legais.
Assim, os venezuelanos tomaram conhecimento da existência de um decreto, cujo texto não conhecem, que pune com até 10 anos de prisão quem "impeça, direta ou indiretamente, a produção, fabricação, importação, transporte, distribuição ou comercialização de bens de primeira necessidade". Como Chávez atribuiu às milícias bolivarianas a responsabilidade pela administração dos estoques de alimentos e produtos agrícolas - militarizando a cadeia de produção, distribuição e comercialização -, está claro que aquele decreto não se destina a proporcionar "segurança alimentar" à população nem a regular o abastecimento. Na verdade, tomará 10 anos de cadeia quem se atrever a organizar protestos contra a ditadura chavista, como fizeram os petroleiros e os produtores industriais e rurais que paralisaram o país em 2002.
Outro decreto reorganiza as Forças Armadas, criando uma Reserva que nada mais é do que um misto de guarda pretoriana e "comitês de defesa". Como essa Reserva será constituída por civis, aproveitando a estrutura das já existentes milícias bolivarianas, Chávez poderá exercer mais facilmente o "controle social" da população, consolidando uma cópia dos Comitês para a Defesa da Revolução de Cuba.
No plano econômico, o pacote introduz as medidas da Constituição rejeitada que implantavam o socialismo. O Estado intervirá nas empresas que não se adaptarem ao "modelo socialista". Da mesma forma, poderá expropriar e suspender a produção de fábricas e interromper greves de trabalhadores. O processo de expropriação de bens fica abreviado com a extinção da exigência prévia de declaração de utilidade pública pela Assembléia.
Sobre um único passo para a consolidação do projeto bolivariano Chávez não precisou legislar. Como ele quer "ganhar, bem ganhas" as eleições regionais de novembro, e anunciou que "aos inimigos, nem água", a Controladoria-Geral, que ele controla, declarou inelegíveis 272 oposicionistas que poderiam atrapalhar seus planos. E ainda há quem diga que a Venezuela de Chávez é uma democracia!