Por aqui, o mapa institucional se apresenta de ponta-cabeça: o Judiciário, Poder imaculado e fiscalizador por excelência, é objeto de intenso questionamento; o Legislativo continua acorrentado aos grilhões do Executivo e este, insensível às críticas feitas aos superpoderes que concentra, estende os seus tentáculos a todos os espaços da vida nacional. A ordem normativa, aproveitando a deixa da expressão popular, vive "a mais perfeita desordem". E a intensidade da crise que rompe a harmonia e a independência entre os Poderes parece coisa banal e previsível. A polêmica em torno da violação das leis e dos atos praticados por agentes públicos extravasa os limites do bom senso. Afeta os brios de operadores do Direito, adentrando o perigoso limite do desaforo. Chega-se a ponto de se defender o "impeachment" do presidente da mais alta Corte. O altar da autoridade cai no fosso do denuncismo que sacode o País. Se essa é a feição de nossa democracia, convenhamos, ela está muito depauperada. Se os conflitos significam a vitalidade de nossas instituições, pode-se aduzir que essa alta disposição é artificial.
Entremos nos buracos institucionais. O primeiro é o rombo no território das leis. O abuso da autoridade tem-se alastrado, particularmente no campo das operações incandescentes da Polícia Federal, que, por sua vez, quer mais independência para agir. Ainda bem que o STF restringe o uso de algemas. O arrazoado anárquico que se desenvolveu a partir de idéias opostas e expressas por conjuntos representativos - entidades de promotores, juízes e advogados - poderia ser considerado vetor de fortalecimento democrático, não fosse o caráter de guerra aberta que se quer emprestar às idéias em confronto. A seiva cívica que se extrairia de um sadio debate dá lugar a sangue contaminado. Ademais, a exacerbação amortece a força do ponto de vista. Parece que os operadores do Direito, na ânsia de realizar a cirurgia ideal para eliminar as impurezas do corpo da Justiça, usam instrumentos inadequados. A autorização dada para a Polícia Federal acessar, de maneira ilimitada, o cadastro e o histórico de ligações de assinantes das companhias telefônicas é de extrema gravidade. E mais: juiz de primeira instância, ao defender a altivez e independência, erra quando critica a conduta de magistrados das Altas Cortes. Antes de virem a público, querelas entre companheiros de magistratura deveriam percorrer os longos corredores das instâncias.
A propósito, é defensável a idéia de que o juiz, como cidadão sensível à realidade, pode expressar-se fora dos autos. Mas não tem o direito de ser leviano e nivelar o discurso pelas raias da irresponsabilidade. "Os juízes devem ser mais reverendos do que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos", ensina o filósofo Bacon. Ao extravasarem para o ambiente externo pontos de vista não arrematados por um necessário debate interno, os operadores acabam contribuindo para aumentar a insegurança social. Como resultado de um tumultuado processo acusatório, emerge a estampa de um Poder não apenas lento, mas confuso.
As rachaduras também são profundas nas cúpulas côncava e convexa das Casas das Leis. Parlamentares não contêm a indignação: nunca o Congresso esteve tão manietado. Faz tempo que o Executivo dá as cartas. O Legislativo age como cego guiado por cachorro treinado. Tateia na escuridão. Perdeu a independência para se locomover livremente. Lula descobriu ser mais fácil governar com um corpo parlamentar amarrado no tronco das medidas provisórias. No Senado, 53 projetos de lei aguardam votação. A pauta está travada. Na Câmara, a situação é idêntica. Parlamentares se dizem espezinhados. Assiste-se ao cúmulo da humilhação: o governo, por medida provisória, cria o Ministério da Pesca, após seis anos de existência da Secretaria Especial da pasta. E os critérios de relevância e urgência? Enquanto os Poderes Judiciário e Legislativo se enforcam nas próprias cordas, o presidente atravessa oceanos, navegando por mares nunca d?antes navegados. Certas viagens dão a impressão de que o motivo é meramente emotivo. Ou o Vietnã tem importância estratégica para o Brasil?
Luiz Inácio frui as alegrias do exuberante Brasil econômico, que, como diz a candidata Marta Suplicy, está "bombando". Mas a "bomba" que se arma no arsenal das contas públicas - e que vai estourar no colo do próximo presidente da República - está muito bem escondida. Fatos negativos vão para debaixo do tapete. Lula é um exímio esgrimista. A respeito da idéia de punir agentes do Estado que praticaram tortura, na época da ditadura, da lavra do ministro da Justiça, Tarso Genro, o presidente manda dizer que não é opinião do governo. Mas a balbúrdia se estabeleceu. A caserna está quente. Listas com o nome de autoridades com "passado terrorista" são veiculadas, trazendo o Executivo para a fogueira que recebe lenha de todos os lados. Para fechar o circuito, a animosidade eleitoral dará o tom, com milhares de perfis de "ficha suja" enfeitando a paisagem. A nuvem pesada sobre o solo institucional, infelizmente, não faz chover um pingo de inovação.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e analista político