Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 10, 2008

Tráfico-Campos de treinamento



Tráfico monta nas matas cursos para jovens integrantes de quadrilhas aprenderem técnicas de guerrilha e uso de armas

Sérgio Ramalho e Vera Araújo

O tráfico no Rio está investindo em jovens sem perspectivas de trabalho nas favelas para treinar, em áreas de Mata Atlântica, verdadeiros guerrilheiros.

A informação de que traficantes estão montando esse tipo de curso é citada em relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e foi obtida também pelos analistas da Coordenação de Segurança e Inteligência (CSINT), do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase).

O documento da Abin foi elaborado com base em dados dos setores de inteligência das polícias Civil e Militar, que constataram o emprego desse tipo de tática em confrontos na mata na Rocinha, no Vidigal e nos morros do Chapéu Mangueira e da Babilônia (ambos no Leme).

Na Zona Sul, a principal facção a usar esse tipo de treinamento tem como principal reduto as favelas do PavãoPavãozinho (Copacabana) e do Cantagalo (Ipanema). De acordo com o relatório da agência, os instrutores são jovens das comunidades que passaram pelas Forças Armadas ou ainda estão prestando serviço militar. Agentes da CSINT descobriram que há casos de alunos de até 11 anos.

— Numa sociedade em que ser cidadão é poder consumir, ganhar R$ 1.500 por semana para trabalhar no tráfico de drogas vira, infelizmente, o principal atrativo para essa juventude.

Ninguém quer receber R$ 415 (salário mínimo nacional) — disse o coordenador da CSINT, major da PM Alexandre Azevedo, que prepara um relatório a ser entregue à Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança.

A proposta do diretor-geral do Degase, Eduardo Gameleiro, é a de usar as informações para melhorar o atendimento nas unidades do órgão, responsável pela aplicação de medidas socioeducativas a crianças e adolescentes infratores.

— Temos que usar esses dados para o bem-estar dessas crianças e adolescentes.

O sentido da inteligência no Degase é pedagógico. Temos que criar programas para atendê-los melhor, a partir da realidade que eles vivem em suas comunidades.

Tráfico paga para jovens se alistarem

Segundo o documento da Abin, como incentivo, traficantes oferecem a jovens R$ 300 semanais para que ingressem no Exército ou na Marinha e, de preferência, se tornem pará-quedistas ou fuzileiros navais. Os mais aptos são alçados à posição de instrutores e passam técnicas de guerrilha, tiro e manutenção de armas aos mais novos das quadrilhas. O relatório acrescenta que esses jovens não se limitam a dar treinamento nas favelas de origem. Os mais capacitados dão aulas em comunidades aliadas e até elaboram planos de invasão em áreas dominadas por bandos rivais.

O documento da Abin também cita as rotineiras apreensões de material militar — armas, munição, roupas e barracas de acampamento — em trechos de mata em favelas como Dona Marta, em Botafogo. Dá informações ainda sobre a descoberta de manuais militares e cartilhas com táticas de guerrilha. Em 2002, O GLOBO revelou que, recém-saídos da caserna, ex-soldados e ex-cabos da Brigada PáraQuedista do Exército (PQDs) treinavam traficantes em troca de até R$ 3 mil por aula ou R$ 8 mil por mês.

Traficantes da Rocinha também recebem instruções desse tipo e, segundo a Abin, vêm usando acampamentos na mata no alto da favela para esconder armas, drogas e munição. O relatório da agência frisa que o uso da estratégia vem crescendo como forma de evitar perdas de armas e drogas.

Integrantes da facção que controla a venda de drogas na Rocinha já usaram trilhas no trecho de Mata Atlântica para surpreender rivais no Morro do Vidigal. Segundo o relatório da Abin, os bandidos teriam colocado armadilhas, semelhantes às usadas por caçadores, em trilhas ligando as duas favelas. O objetivo: evitar que os caminhos fossem usados por bandos rivais e integrantes de unidades de elite das polícias Militar e Civil.

O titular da Coordenadoria de Recursos Especiais, delegado Rodrigo Oliveira, reconhece que o treinamento de jovens está se aprimorando: — Quanto menos discernimento, maior o potencial para produzir o mal. Eles acabam fazendo o que o tráfico manda para subir na hierarquia.

As primeiras informações sobre esse treinamento surgiram em 2005, quando um órgão de inteligência do estado interceptou uma conversa entre dois traficantes marcando cursos para “gerente” do tráfico (no Vidigal) e para segurança de quadrilha (em Vigário Geral). Segundo uma fonte da polícia, acostumada a fazer operações na mata, os jovens cada vez mais usam técnicas de guerrilha: — O pior disso tudo é que, para eles, não existe código de guerra. É violência crua. Usam pessoas como escudos e detonam explosivos de forma indiscriminada.
Um dos objetivos é ensinar a montar e gerenciar boca-de-fumo
Aulas incluem ainda lições sobre como atravessar valões, se esconder na mata e suportar torturas
Não importa a compleição física ou o sexo. O que conta é a capacidade de iniciativa, a competitividade e a vontade de montar sua própria “empresa” (boca-de-fumo). Longe de serem regras de empreendedorismo ou gestão de negócios, essas são as qualidades exigidas de quem pretende fazer o curso de treinamento para gerência e segurança do tráfico adotado em pelo menos oito favelas do Rio.

Com duração de seis a 12 meses, o curso é ministrado, geralmente, por ex-integrantes de tropas de elite das Forças Armadas, como expáraquedistas e ex-fuzileiros navais. A faixa etária das turmas, que devem ter até 14 integrantes, começa a partir de 11 anos.

Dois adolescentes que fizeram o curso em favelas de duas facções criminosas contaram ao GLOBO que, para se habilitar, passaram pelos estágios de fogueteiros (responsáveis por soltar fogos para alertar para a chegada da polícia), “aviões” (transportadores de drogas), cargueiros (levam para a favela as drogas encomendadas) e “vapores” (encarregados de vender drogas). Os dois afirmam que não foram aliciados pelo tráfico, e sim que atuar no crime era o único trabalho disponível na comunidade onde moravam.

— Ninguém me ofereceu nada. Eu fui porque quis. Fui fogueteiro, “vapor” e virei cargueiro.

Também trabalhei de “avião”. Por último, depois da “graduação” (curso), fui ser gerente — disse K., um dos alunos.

Ao contrário do que se possa imaginar, não é subir um morro com um fuzil AR-15 — que pesa quatro quilos sem o carregador — a parte mais difícil do curso. São as sessões de tortura psicológica e as aulas de esconderijo, em valões fétidos, as partes mais complicadas.

— Perguntaram se eu queria ficar 12 meses no mato. Pensei: não adiantava nada estar ali (na favela) e não saber atirar, usar uma arma. Era um bom treinamento. Não podia estar despreparado.

Formaram uma turma, mas ninguém era obrigado.

Agora, quem aceitasse ir para o mato não podia voltar atrás. Ele (o instrutor) sabia que todo mundo ia correr quando começasse o treinamento.

A partir do momento em que se aceita, não dá para correr — diz K., franzino, de aproximadamente 1,50 metro e 45 quilos.

O jovem passa por pelo menos oito estágios: atravessar valões, aprender a se esconder na mata ou na favela, controlar a mente para não sucumbir às sessões de tortura, progredir nos morros, usar facas, manusear da pistola ao fuzil, montar armadilhas na mata e, por último, gerenciar um ponto de drogas.

— A primeira tarefa era nadar no valão. Foi o pior. Era podre. A gente só segura na arma depois de sete meses. É o que mais a gente quer.

Eles davam o tom. Na última parte, nos ensinaram a montar a nossa própria boca. Era como montar uma empresa. Poucos conseguiram passar. Eu consegui — conta K.

Para Y, o pior mesmo foi o terror psicológico: — Era como brincar de polícia e bandido. A gente ficava numa casa sem nada, um tempão longe da família. Soltavam a gente de noite para os “alemães” (PMs) arregados (pagos pelo tráfico) pegarem a gente. Era para saber quem dava mole, vacilava. Era tudo armado, pois depois eles nos soltavam, mas a gente não sabia. Era só “esculacho” (humilhação), quando nos pegavam.

Y. lembra que os instrutores repetiam o tempo todo que eles não iam sobreviver: — Eles diziam que queriam criar bichos.

Poucos chegaram ao final.

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