Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 10, 2006

FERREIRA GULLAR Profissional do desafio




Esse cara de múltiplos talentos nascera poeta e chegou a ser cordelista da mídia eletrônica

POUCAS PESSOAS encontrei, na vida, capazes de topar desafios como certo cara chamado Reynaldo, que conheci há muitos e muitos anos.
Sei que ele nasceu em São Paulo, mas, aos 30 anos de idade, estava no Rio de Janeiro e foi procurar a condessa Pereira Carneiro, então proprietária do "Jornal do Brasil". O referido jornal, naquela época, era um mero veículo de anúncios classificados, e quase a totalidade de sua matéria jornalística era transcrita da Agência Nacional, órgão de divulgação do governo federal. Reynaldo propôs à condessa melhorar o suplemento feminino, e a condessa topou.
Ele então começou a adicionar, às receitas de bolo, poemas, crônicas e contos, de modo que, em breve, nascia um suplemento literário que logo se tornaria o mais revolucionário e polêmico da imprensa brasileira. O SDJB, como ficou conhecido, tornou-se o porta-voz da poesia concreta e, em seguida, do movimento neoconcreto, cujas obras e idéias mudariam o curso da arte brasileira.
Mas esse Reynaldo não era só o inventor e diretor do SDJB, porque, poeta que é, participou dos dois movimentos com poemas audaciosos, sem falar em seu "livro infinito" e no balé neoconcreto, que, em vez de ser dançado por bailarinos, era-o por duas grandes placas de cor que se moviam no palco. Isso para não falar na música neoconcreta que ele tentou inventar.
A sala onde funcionava o SDJB fervia. Certo dia, apareceu lá um sujeito de cabeça raspada, dizendo-se o verdadeiro criador da arte neoconcreta; ao desatar a trouxa que trazia, deixou ver um amontoado de pequenas formas retorcidas, feitas com pedaços de lata de azeite. Pouco depois, surgiu ali uma moça que antes enviara alguns poemas de sua autoria, um dos quais terminava assim: "Ah, meus sapatos amarelo-girassol". Reynaldo mandou chamá-la, publicou-lhe os poemas e fez dela sua secretária.
Um dia, a moça se tomou de fúria, quebrou a Redação, atirando no chão as estantes de livros. Mas nem todos os freqüentadores do SDJB eram assim; havia também os doidos mansos, como Mário Pedrosa, Clarice Lispector e mesmo Alexander Calder, que um dia apareceu lá.
O êxito obtido pelo suplemento levou a condessa a buscar a renovação do próprio jornal. O melhor dessa reforma -que não foi apenas gráfica mas estrutural- deveu-se a Jânio de Freitas, que contou com o talento de Amílcar de Castro, escultor integrante do grupo concretista do Rio. Diga-se, porém, a bem da verdade, que a renovação gráfica do jornal já havia sido iniciada por Reynaldo, no SDJB, e desenvolvida com tanta audácia que gerava conflitos com a direção da empresa, preocupada com o desperdício de papel. A gente chamava isso de "a guerra contra o branco". Quando o SDJB morreu, ele criou o "Caderno B", que se tornaria um padrão para os jornais brasileiros: a novidade consistia em reunir, num só caderno, todas as seções e matérias relacionadas a artes e espetáculos. Hoje, não há jornal que não tenha o seu "Caderno B".
Em 1964, adveio o golpe militar, que obrigou muita gente a se esconder para escapar à repressão. Reynaldo, ciente da situação de alguns amigos, ofereceu-lhes o sítio que possuía em Nova Friburgo, para lá ficarem até que baixasse a poeira. Lá nos refugiamos, Jânio de Freitas, José Silveira e eu, mas, para nossa surpresa, poucos dias depois, chegou o Carlinhos Oliveira que, vindo da Europa, decidiu passar uns dias no sítio sem falar com o dono. Na apreensão em que estávamos, a presença do Carlinhos parecia-nos uma ameaça, o que nos fez abreviar a permanência ali. Reynaldo, ao saber disso, apenas caiu na gargalhada.
Um novo desafio se colocou para ele quando surgiu a idéia de fundar um jornal-escola para jovens e futuros jornalistas. Na verdade, tratava-se de formar jovens para resistir à ditadura. O novo jornal, "O Sol", nasceu parecido com o SDJB: como encarte do "Jornal dos Sports", mas durou apenas seis meses. Outros desafios se seguiram: Reynaldo dirige a revista "Senhor", o "Correio da Manhã" e, daí para diante, anda de cidade em cidade reformando jornais.
Mas esse cara de múltiplos talentos nascera poeta e, como tal, também se propôs desafios, chegando ao ponto de comentar em versos, numa estação de televisão, o fato importante do dia, como um cordelista da mídia eletrônica. E, mais recentemente, repetiu a proeza, publicando -e ilustrando -um poema por dia no "Caderno B" do "Jornal do Brasil".
Pois bem, esse sempre jovem cidadão, cujo nome por inteiro é Reynaldo Jardim, aniversaria quarta-feira próxima, dia 13. Completará 80 anos, e não há quem diga.

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