Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 14, 2005

Roberto Pompeu de Toledo:Pentecostes fica longe daqui

Um belo filme mostra que, no milagre
da transfiguração dos idiomas,
o português não tem vez

No dia de Pentecostes, tal qual se lê nos Atos dos Apóstolos, estavam os discípulos de Jesus reunidos quando de súbito veio do céu ruído parecido com o de um vendaval. Uma língua de fogo pousou em seguida sobre a cabeça de cada um deles, e os discípulos puseram-se a falar línguas que não conheciam. Eles podiam agora se fazer entender por habitantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene, bem como por partos, medos e elamitas, romanos, cretenses e árabes. Era a Babel redimida. O milagre do entendimento universal, para que a todos os rincões fosse levado o Evangelho.

Um Filme Falado, fita do português Manoel de Oliveira em cartaz em São Paulo, repete Pentecostes em outro contexto e por meio de outro órgão dos sentidos. Sentadas à mesma mesa, no refeitório de um navio que partiu de Lisboa e, tal qual na viagem de Vasco da Gama, ruma para a Índia, uma francesa, uma italiana, uma grega e seu anfitrião, o comandante americano do navio, falam cada qual na sua língua – e se entendem perfeitamente. O século é o XXI, não o I da era cristã, o que está em jogo são a política e a história, não a religião, e o órgão milagroso é o ouvido, não a língua – mas o mesmo fenômeno de libertação do jugo do monolingüismo, a mesma superação da maldição de Babel estão presentes. A seqüência ganha força redobrada por causa das intérpretes, ícones de seus respectivos países – a francesa Catherine Deneuve, a italiana Stefania Sandrelli e a grega Irene Papas. O capitão do navio é o americano John Malkovich.

Manoel de Oliveira é um fenômeno. Tem 96 anos, começou no cinema mudo e continua ativo. Nesse belíssimo Filme Falado – o título já alude ao sortilégio da fala –, a protagonista é a própria civilização ocidental, sua glória, suas conquistas e o perigo de morte que a ronda. Mas não nos aventuremos pelas várias leituras que a obra oferece. Fiquemos na mesa à qual se dá a prodigiosa conversa das quatro línguas transubstanciadas em uma. Não por acaso, estão ali representadas a Grécia das origens ocidentais, a Itália do Renascimento e a França da Revolução e das Luzes. Entendem-se todas com o americano, que é quem comanda a viagem. Enquanto isso, espreita-as, de uma mesa próxima, tímida e curiosa, uma jovem portuguesa, que viaja acompanhada da filha.

Na verdade, são elas, mãe e filha, as personagens principais da história. É a viagem delas que o espectador acompanha, desde Portugal, com escalas na França, Itália, Grécia, Egito e portos da Península Arábica. A mãe, professora de história, dá à filha aulas sobre as pirâmides do Egito e a Acrópole de Atenas. O filme vai acabar mal, com a gloriosa civilização ocidental encurralada pelas bombas do terrorismo árabe, mas desviemos também desse caminho. O que nos interessa é o Pentecostes em alto-mar. Portugal foi quem descobriu o caminho das Índias, mas quem agora empreende a viagem é o comandante americano, e à portuguesa do filme resta espreitar de esguelha a mesa da celebração da unidade transnacional. Isso no primeiro dia. No segundo, o comandante convida a portuguesa e a filha a se juntarem a eles – e, então, o que acontece? Acabou o milagre. À língua portuguesa se nega a graça pentecostal. Se o comandante do navio, que morou no Brasil, ainda arranha o idioma, as demais convivas não são capazes de entendê-lo. A saída é falar inglês, o inevitável inglês. Portugal, e com ele a língua portuguesa, só entra de favor na triunfal comunhão do Ocidente.

Essa conclusão já seria cruel o bastante para os brios da língua de Camões. Por obra não de Manoel de Oliveira, mas dos exibidores, fica mais cruel ainda para quem vê o filme no Brasil. Aqui, o filme é exibido com legendas. Legendas em português para traduzir o português. Quer dizer: se Portugal não tem assento à mesa, o Brasil, então... Daqui, Pentecostes passa ainda mais longe.

•••

O filme de Manoel de Oliveira não mereceria ser ligado às insignificâncias de nosso dia-a-dia, mas, que diabos, sua exibição coincide com eventos como a cúpula da semana passada em Brasília. Para se contrapor ao banquete dos grandes, o Brasil inventou uma mesa paralela, na qual reuniu árabes e sul-americanos. Enquanto isso, os grandes se reuniam para celebrar os 60 anos do fim da II Guerra Mundial e não convidaram o Brasil, único sul-americano a participar do conflito. Resta o consolo de que no nosso passaporte agora estará escrito "Mercosul". Curioso: o governo do PT, partido campeão da oposição ao neoliberalismo e ao predomínio dos mercados, nos faz cidadãos de um mercado. Releve-se. Não nos apresentaremos mais ao mundo como um mero Brasil. Queremos um lugar à mesa do comandante, quer dizer, do Conselho de Segurança da ONU, e supõe-se que tudo isso ajude. Espera-se que o fim da viagem não seja triste como no filme de Oliveira.
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