Parte das crises entre Brasil e Argentina é pura fumaça. Do lado de cá, a mistura do voluntarismo com marketing que está presente em algumas posições da política externa brasileira. Do lado de lá, o estilo de governar do presidente Kirchner, criando conflitos e explorando o ressentimento em relação ao Brasil. Esse sentimento aumentou depois que o Brasil comprou três símbolos da burguesia industrial argentina.
Perez Companc, a empresa petrolífera argentina, foi comprada há alguns anos pela Petrobras. Depois foi a Quilmes; pela AmBev. E, mais recentemente, a maior indústria cimenteira do país, a Loma Negra, foi comprada pela Camargo Corrêa. Outras grandes empresas foram vendidas ao capital espanhol e até ao chileno, mas o que dói neles são as compras do Brasil.
Esse tipo de sentimento, de quem já foi a maior economia da América do Sul e perdeu peso, não tem muita solução. Mas agrava-se com o presidente Néstor Kirchner. Diariamente ele cria conflitos com os mais variados setores e, de quando em vez, ataca o Brasil com suas farpas.
A reunião dos embaixadores argentinos nos Estados Unidos era para fazer um balanço da política externa argentina. Alguns dos temas conversados saíram nos jornais. O que mais tem apelo jornalístico é a série de alfinetadas no Brasil. Isso é o que detonou a última crise. Deve-se levar em conta que o ministro das Relações Exteriores da Argentina, Rafael Bielsa, está também atrás dos holofotes: é candidato a candidato nas próximas eleições parlamentares em outubro. Kirchner gosta ele mesmo de assumir as funções de ministro das Relações Exteriores e tem tratado Bielsa como se fosse um assessor para assuntos externos. O resultado é que o ministro nunca teve o prestígio externo de um Guido di Tella, o ministro do governo Menem.
Do lado de cá da fronteira, as coisas também não têm sido fáceis. As missões confiadas por Lula a Marco Aurélio Garcia e ao ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu, dão a impressão de que é uma diplomacia multicéfala.
A atitude do governo, na área externa, tem sido a de dar um ar de ineditismo a todas as ações, por mais que elas sejam seguimento de outras que ocorreram no passado. Ontem no programa de rádio, o presidente disse que quer "negociar com autonomia. Negociar defendendo os interesses soberanos do Brasil". Como se em outros governos não se negociasse defendendo os interesses soberanos do Brasil. É bom lembrar que o chanceler Celso Amorim já foi ministro antes, além de ser quadro de carreira do Itamaraty. Pode atestar que a qualidade da nossa política externa não depende de governos. São funcionários do Estado brasileiro. As vitórias nas questões na OMC, que o atual governo sempre se atribui, o ministro Celso Amorim também sabe que são conquistas que atravessam governos. Ele, que exerceu as funções diplomáticas em Genebra de forma muito aguerrida, sabe que as queixas contra os subsídios do algodão, do açúcar, são velhas brigas que vêm de outros governos.
Na conflituosa relação com a Argentina, o Brasil não precisa nem de dar motivos. Eles sempre encrencam com alguma coisa. No caso do asilo dado ao ex-presidente Lucio Gutierrez, o Brasil não tinha alternativa. Pelos tratados que assinou, pela tradição latino-americana, ele teria que conceder o asilo, e não tinha por que convocar reunião regional para decidir. Em outras iniciativas, no entanto, tem que consultar os parceiros. A própria reunião de cúpula com países árabes foi definida, por um especialista em política externa, como uma iniciativa individual brasileira, à qual a Argentina e outros países aderiram.
O voluntarismo também esteve presente na fracassada candidatura para a Organização Mundial do Comércio. O Brasil tem a tradição de articular bem suas candidaturas externas. Pode perder, mas não ser acusado de improvisação. Nesse caso, não. O candidato do Uruguai foi criticado pessoalmente e a candidatura do embaixador Seixas Correia não foi previamente articulada.
Apesar de toda a fumaça, o comércio entre Brasil e Argentina continua se recuperando. No primeiro trimestre, as exportações brasileiras cresceram 35%, depois de terem crescido 61% no ano passado e 94% no ano anterior. As importações de produtos argentinos tem crescido, mas de forma menos dinâmica: 8% neste primeiro trimestre e 19% no ano passado. A agressividade das exportações brasileiras de manufaturados é outra fonte de ressentimento argentino. Mas, nesse caso, o Brasil não tem que se culpar por ser competitivo.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, maio 03, 2005
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