Em meio à crise que domina a atuação do Congresso, paralisado por uma disputa entre a Câmara e o Palácio Planalto em torno da reforma tributária que parecia ter sido superada por um acordo de líderes, surge agora uma crise dentro do próprio Legislativo, entre a Câmara e o Senado, que teve início devido à rejeição do nome do jurista paulista Alexandre de Moraes para o Conselho Nacional de Justiça, mas que ontem descambou para uma confrontação política mais grave entre oposição e governo.
A oposição, que havia aceitado uma trégua com o governo para desobstruir a pauta da Câmara, jogando a discussão sobre a reforma tributária para o segundo semestre, não está mais disposta a cumprir o acordo, depois que os petistas ameaçaram com uma outra CPI, sobre as privatizações no governo Fernando Henrique, para tentar anular a CPI dos Correios.
Ao mesmo tempo, o presidente do Senado, Renan Calheiros, anunciou que aguardará até a próxima quarta-feira para instalar a CPI, certamente contando com a dificuldade da oposição para reunir o número suficiente de parlamentares na véspera de um feriadão. E também para dar tempo ao Palácio do Planalto de pressionar seus aliados a retirarem suas assinaturas do requerimento.
Será uma verdadeira operação de guerra, que certamente exigirá do governo uma atuação agressiva que pode deixar à mostra métodos não convencionais de persuasão que podem desmoralizar mais ainda a classe política e, em conseqüência, o governo.
A oposição conseguiu 220 assinaturas na Câmara, e há quem garanta que tem mais uns 10% no bolso do colete para fazer frente ao avanço do governo. Como o número mínimo para uma CPI é de 171 assinaturas, o governo terá que conseguir convencer mais de 50 deputados da base a mudarem de idéia. O que, convenhamos, é um arrependimento em massa que só argumentos muito fortes e nada ortodoxos provocariam.
No Senado, há 49 assinaturas no requerimento da CPI, quando o mínimo é de 27. Também aí uma mudança de lado de mais de 20 senadores poderá ser escandalosamente estranha.
Uma solução política para o caso da indicação de nome do PFL paulista ao CNJ parece simples: a Câmara deixa de indicar um nome e o Supremo Tribunal Federal escolhe o próprio Alexandre de Moraes, que até já tivera reuniões com o presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Nelson Jobim, tão certa parecia sua nomeação.
Na quarta-feira, depois da decisão do Senado, que foi motivada por uma retaliação política do governo contra a oposição, o ministro Jobim conversou por telefone com o chefe da Casa Civil, ministro José Dirceu, ressaltando que a politização da escolha dos membros do CNJ só faz enfraquecê-lo diante da opinião pública e dos próprios magistrados, que têm muita resistência à sua criação.
Mas o fato é que não apenas a oposição, que derrotara o governo na indicação de Moraes para o Conselho, mas os deputados de maneira geral, sentiram-se mais uma vez desmoralizados pelo Senado, revivendo um antigo atrito.
No início do governo Lula, quando o Palácio do Planalto ainda tinha organização na Câmara, em várias ocasiões a bancada aliada conseguiu fazer acordos com a oposição para aprovar reformas, como a da Previdência, por exemplo, e era desautorizada pelo Senado. Os deputados da base aliada queixavam-se de que muitas vezes votavam contra suas próprias convicções apenas para apoiar o governo, e viam os senadores posarem de "bonzinhos", arrancando do Planalto novas concessões.
O que agrava o quadro político é que essas sucessivas crises, sejam dentro da base aliada, sejam entre as duas Casas do Congresso, sejam ainda dentro do próprio PT, não têm uma razão apenas, mas várias, todas elas ligadas não só à sucessão presidencial, mas sobretudo à eleição para a renovação da Câmara e do Senado.
Como nosso sistema político privilegia a atuação individual dos parlamentares, tornados peças autônomas, e não parte de uma engrenagem política mais ampla, cada interesse individual se sobrepõe ao interesse coletivo. O governo exacerbou essa característica do nosso sistema partidário escolhendo uns poucos partidos para estimular o troca-troca, que esvaziou os partidos de oposição.
O PSDB hoje é o sexto partido em bancada dentro da Câmara, embora seja tido como o mais forte adversário contra a reeleição de Lula. Ao mesmo tempo, os partidos da base aliada, inchados pelo adesismo fisiológico estimulado pelo Planalto, procuram ganhar mais espaço dentro do governo Lula, apavorados com os planos de expansão do PT nas eleições de 2006.
Fala-se à boca pequena que o plano estratégico do PT é aumentar sua bancada de 91 — já é a maior representação da Câmara — para 130 deputados. Isso sinaliza várias coisas, mas especialmente uma: o governo prepara-se para, num eventual segundo mandato de Lula, não precisar tanto dos aliados fora da esquerda partidária. O PMDB, que é a segunda bancada da Câmara, com 85 deputados, se sente ameaçado por essa estratégia hegemônica do PT. E os demais partidos aliados sabem que esses 40 deputados a mais seriam eleitos às custas da sangria dos demais partidos.
O único partido que o governo realmente se interessa em cooptar para sua base é o PMDB, impressionado com a força da legenda pelo país. Recentes pesquisas mostraram que o PMDB é a segunda legenda mais lembrada e gostada pelos eleitores, perdendo apenas para o PT. Sem contar que o PMDB saiu da eleição municipal como o partido que elegeu mais vereadores.
Mas quanto maior o interesse do governo, mais o PMDB fica arredio, à espera de saber para que lado o vento vai soprar em 2006.
o globo
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