Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, maio 13, 2005

Merval Pereira:Meia democracia



Ao aceitar que a defesa da democracia não constasse da declaração final da Cúpula América do Sul-Países Árabes, o Brasil, mais uma vez, em nome do pragmatismo comercial, abriu mão de valores que não deveriam estar sujeitos a esse tipo de pressão. Além do mais, teria sido dispensável a tentativa de explicação do presidente Lula sobre a variação dos valores democráticos, como se existisse "meia democracia".

Ainda mais que ele já tem no currículo a sistemática complacência com Fidel Castro, seu ditador preferido, e uma compreensão infinita do que seja a "revolução bolivariana" de um outro amigo polêmico, Hugo Chávez.

Insistir na defesa da necessidade de espalhar a democracia pelo mundo seria uma maneira de assumir a política externa hegemônica do presidente George W. Bush para a região, alegaram conselheiros presidenciais, esquecendo-se de que a maioria da população mundial já vive hoje em países democráticos. Não é preciso defender a implantação da democracia à força, como quer a administração Bush, para que o conceito esteja presente num documento como objetivo a ser alcançado.

O fato é que a política externa brasileira atual, a mais agressiva e dissonante de toda nossa história diplomática, tem um objetivo básico: assegurar um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU e, por extensão, no cenário internacional. Um dos pontos positivos da Cúpula para o governo brasileiro teria sido garantir o apoio dos países árabes a essa reivindicação, muito embora o mais importante país árabe, o Egito, que também tem a mesma aspiração, não tenha vindo ao encontro, numa demonstração de que foi mais sensível aos argumentos de Washington.

O que o Brasil parece esquecer — e o Egito não — é que para que essa conseqüência se torne realidade, há que garantir uma premissa: a reforma administrativa e política da Organização das Nações Unidas (ONU) vai sair do papel. E essa é uma premissa que, quer queiramos ou não, depende de apenas um jogador: os Estados Unidos.

É consenso entre os analistas internacionais que o Brasil, sendo um país continental (é o quinto país do mundo em extensão), tem automaticamente um lugar de relevo no cenário internacional. É um monster country (país de grandes dimensões), na definição de George F. Kennan, citado pelo ex-chanceler Celso Lafer em seu livro "A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira". Essa definição leva em conta, além dos dados geográficos e demográficos, os econômicos e políticos, e a magnitude dos problemas e dos desafios que tem a enfrentar.

Assim como estão na mesma categoria os Estados Unidos, a Rússia, a China (todos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) e a Índia. Não é por acaso que um relatório da consultoria financeira americana Goldman Sachs, divulgado amplamente pelos meios políticos e empresariais, cita os quatro países emergentes como os mais prováveis de estarem no topo da economia mundial nos próximos 50 anos: Brasil, Índia, China e Rússia.

Não exatamente nessa ordem de importância, mas nessa ordem para formar a sigla BRICs, que já se tornou um jargão nos meios financeiros internacionais para identificar as oportunidades que surgirão no horizonte financeiro mundial nos próximos anos. Segundo o estudo, em menos de 40 anos, os BRICs juntos poderão ser maiores que os países que formam hoje o G-6 ( Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Inglaterra e Itália).

O professor Nelson Franco Jobim, da UniverCidade, lembra que China e Índia, duas culturas milenares com sofisticação e criatividade, cada um com mais de um bilhão de cérebros, têm uma vantagem competitiva na era da informação, na economia baseada no conhecimento, onde o número de cérebros aptos para o trabalho é fundamental. Segundo ele, países com culturas e identidades nacionais fortes, como Japão, Índia, China, Brasil e França, entre outros, serão sempre contrapontos e jamais vão se americanizar, apesar da tremenda presença da cultura americana no nosso cotidiano.

Por situar-se na América do Sul, o Brasil não está e nunca esteve na linha de frente das tensões internacionais. Já o Barão de Rio Branco, que organizou nossas fronteiras, queria "a união e a amizade dos países sul-americanos" e em 1909 fez um projeto de ação conjunta entre Argentina, Brasil e Chile, o ABC. O ex-chanceler Celso Lafer lembra que "a linha de continuidade de sua ação histórica coloca o Brasil à vontade com o componente sul-americano de sua identidade internacional, que é uma força profunda, de natureza positiva, de sua política externa".

Para se afirmar nesse cenário internacional, o Brasil vem jogando com o projeto do Mercosul e com planos de integração física da região, exemplos de "transformação de fronteiras de separação em fronteiras de cooperação", como ressalta Lafer. A questão é que a agressividade de nossa política externa atual exacerba as tensões com a Argentina, peça fundamental para a existência do Mercosul como mecanismo de negociação regional.

É verdade que essas tensões, em grande parte, são geradas pelo espírito inquieto de Kirchner, uma espécie de Itamar Franco em ritmo de tango, e sua necessidade de fazer piruetas para o público interno. Mas o ex-chanceler Celso Lafer considera que a política externa do governo Lula contribui "para multiplicar tensões e incertezas".

O papel de relevo do Brasil no cenário internacional não é, portanto, uma obra do governo Lula, que parece apenas ter pressa em viabilizá-lo no curto espaço de uma administração.
o globo

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