Mais que o enterro (temporário) do aumento salarial dos deputados, os primeiros 20 dias de trabalho da Câmara dos Deputados sob nova direção produziram um substancioso desmentido à apressada conclusão de que teria havido uma revolução à francesa no Legislativo.
Semana passada ficou bem claro: nem a aristocracia foi derrubada nem as massas populares ascenderam ao poder. Não houve rebelião do baixo-clero ou inversão da hierarquia do poder de fato (embora tenha havido do poder de direito) no Parlamento.
O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, obteve em favor do aumento dos salários o apoio dos mesmos cento e alguma coisa deputados que votaram nele no primeiro turno da eleição em 15 de fevereiro último.
“A Câmara será conduzida pelos outros 400”, diz o líder da minoria, José Carlos Aleluia, numa tradução um tanto livre do que seria a condução do Parlamento. Na verdade, o rumo continuará a ser dado pelos de sempre: os líderes de bancada, os deputados de opinião mais influente, os cardeais, enfim.
Isso significa que o novo presidente preside, mas não fala pela Câmara, não é seu porta-voz; não traduz, portanto, como se interpretou apressadamente, a “cara do Brasil”.
Severino não perdeu apenas no quesito sintonia externa – ao insistir no reajuste mesmo diante da reação popular. Com a aprovação da lei de Biossegurança, ficou em minoria também no tocante à aliança conservadora com a Igreja Católica.
De positivo, o deputado Aleluia destaca em Severino Cavalcanti sua disposição de pôr todos os assuntos, independentemente da opinião que tenha a respeito deles, em votação. O exemplo da Biossegurança é típico.
O antecessor, João Paulo Cunha, segurava a proposta havia cerca de seis meses só para não se indispor com a companheira Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e contrária à liberação dos produtos transgênicos.
Nesse aspecto, Severino pode até representar um avanço pois, ao não dispor de um poder de controle resultante de um esquema político ou ideológico, isso significa que não tem projeto estratégico e, portanto, não põe a presidência da Câmara a serviço de um plano B.
Se tampouco puser a serviço de um grupo que não tem amálgama ideológico mas tem muitos, variados e nem sempre ortodoxos interesses, terá tornado injustificados os temores resultantes de sua eleição.
Apesar dos sinais iniciais de que o mundo não se acabou como parecia indicar o cenário brasiliense na manhã de 16 de fevereiro, e que Severino é até capaz de não decepcionar no item transparência, a votação da lei de Biossegurança também evidenciou uma carência.
A sessão foi quase que totalmente conduzida pelo primeiro vice-presidente, José Thomaz Nonô, fato inusitado, pois dificilmente votações importantes deixam de ser presididas pelo titular, ainda mais sendo como foi o caso, a primeira.
Severino presidiu a sessão por alguns minutos durante os quais interpretou equivocadamente um acordo feito entre os líderes para encerrar a discussão e dar início logo à votação.
Pelo tom dos primeiros acordes, o PFL, partido de Nonô, poderá ter sido o feliz ganhador do controle do plenário da Câmara, mas isso só com o tempo poderá ser conferido.
De certeza, só a evidência de que Severino não tem força nem influência suficientes para imprimir seu padrão parlamentar ao restante do colegiado.
Os líderes agora estão preocupados em estabelecer uma agenda de trabalho a fim de não perder a oportunidade de levar a Câmara para longe da areia movediça que ameaçava engolir a instituição 20 dias atrás.
Mas não é ruim um presidente da Câmara sem liderança nem sustentação na maioria?
“Depende. Pior seria se ele tivesse conseguido impor a sua visão”, diz José Carlos Aleluia.
Valerá o escrito
Vozes da experiência aconselham o presidente da Câmara a não dar ouvidos a seus aliados mais vorazes – no tocante ao jogo de pressão para obtenção de vantagens – e “baixar a bola” do caso da representação do PSDB contra o presidente Luiz Inácio da Silva por causa de acusações sobre corrupção no BNDES.
Todo o esforço é no sentido de Severino só decidir a respeito do pedido de processo depois de o Supremo Tribunal Federal se pronunciar sobre o assunto. E o STF fará isso logo que a Advocacia-Geral da União mandar, por escrito, as explicações do presidente.
A aposta geral é numa solução favorável ao Planalto. Assim como a carta de suposta retratação que o New York Times mandou para Lula serviu de pretexto para ele rever a decisão de cancelar o visto de Larry Rother, a mensagem presidencial à Justiça servirá para encerrar o caso provocado pelos excessos verbais do presidente.
Para a oposição, o episódio já rendeu o suficiente.
Meia-volta
Os discursos indignados contra o aumento de salários para os parlamentares são produto para consumo externo. Internamente já circula a intenção de retomar o assunto – de uma forma discreta, de preferência através de um subterfúgio qualquer – mais para o fim do ano.
O Congresso não quer deixar o assunto para 2006, ano eleitoral para todos os deputados e um terço do Senado.
Entrevista:O Estado inteligente
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