Dois telefonemas, duas respostas opostas. “É uma catástrofe”, diz o professor John Wilkinson, da Universidade Rural do Rio. “É um avanço”, diz Fernando Reinach, pesquisador que participou do primeiro projeto genoma da Fapesp e ex-presidente da CTNBio. A Lei de Biossegurança foi comemorada, com razão, por quem viu toda a parte da abertura da pesquisa com células-tronco. A parte dos transgênicos é bem mais polêmica.
A clivagem que se formou em torno da célula-tronco era, de um lado, uma visão científica e progressista; de outro, uma visão obscurantista com pretexto religioso. Dizer não a uma pesquisa que poderá salvar e resgatar vidas é simplesmente inaceitável. Em boa hora, a sociedade brasileira se uniu aos melhores cientistas para superar a barreira criada por velhos preconceitos. Muitas vezes, a religião quis parar a ciência. Mas ela se moveu. Sempre.
Diferente é a natureza do outro tema tratado pela mesma lei: o que libera os transgênicos. Ele não opõe obscurantistas contra cientistas; divide de uma forma mais inquietante. De um lado, o agronegócio quer produzir mais a menor custo e elevar a competitividade. De outro, os ambientalistas temem o prejuízo para a diversidade genética, grande patrimônio do Brasil. De um lado, o agronegócio quer rapidez, agilidade de decisão numa economia global nervosa, que não tem tempo a perder. De outro, os ambientalistas defendem o princípio da precaução. O Ministério da Agricultura está aliviado e comemora a agilidade que a questão terá agora com a CTNBio tomando as decisões. O Ministério do Meio Ambiente acha que, numa questão fundamental, seus mais razoáveis alertas não foram levados em consideração e também que uma comissão técnica com superpoderes sem a visão ambiental é um precedente perigoso.
Fernando Reinach acha que a decisão da lei esclarece o tema e melhora o marco regulatório. Ele conta que, em 98, a CTNBio aprovou a soja transgênica da Monsanto, mas que, em seguida, os ambientalistas encontraram brechas na lei e vários órgãos puxaram para si a decisão. Desde então, na visão do professor, a questão da soja da Monsanto e de outros grãos geneticamente modificados ficou bastante confusa:
— A nova lei tampa esses buracos. A CTNBio dá a palavra final sobre se é seguro ou não. Se algum ministério quiser contestar, pode apelar para o conselho de ministros. Antes, o Ministério do Meio Ambiente dizia que tinha que ter Relatório de Impacto Ambiental, outro exigia outra coisa. Acontecia o mesmo que com as hidrelétricas: parava tudo.
John Wilkinson, da UFRRJ, acha que a comissão ficou com superpoderes de aprovação de pesquisa e de comercialização e, pelas decisões que já tomou, mostra que os organismos geneticamente modificados vão dominar o agronegócio brasileiro.
— Os transgênicos poderiam ser permitidos, mas com rotulagem, rastreabilidade e protocolos de segregação e preservação de identidade — diz.
Para o professor, o produtor que quer plantar transgênico deve ter permissão, mas dentro de normas que protejam e diferenciem o produto convencional e o orgânico. Até porque, a partir da liberação dos transgênicos, o que o Brasil dirá ao cliente que quer o produto convencional? Pela força dos OGMs, os riscos de contaminação são muito grandes, principalmente no que eles chamam de produtos de “polinização aberta”, como o algodão e o milho. A soja seria menos perigosa por ser de polinização fechada.
— Depois da lei aprovada, disseram: venceu a ciência. Como se ecologia não fosse ciência. Como se, ao pedir cuidados, critérios, zoneamento, testes, fôssemos obscurantistas. Qualquer hora dessas, vão negar o risco de mudança climática. Ciência também é dúvida e temos dúvida — protestou um inconformado integrante do Ministério do Meio Ambiente.
O Instituto de Defesa do Consumidor integrou a CTNBio entre 96 e 97 e saiu protestando contra a aprovação da soja da Monsanto. A coordenadora do Idec, Marilena Lazzarini, que foi a representante na comissão, acha que a lei como está é perigosa, porque, se houver qualquer divergência, não se tem a quem recorrer. E ela teme principalmente as dúvidas sobre a saúde humana.
— Os membros da comissão não são especialistas em biossegurança e sim em biotecnologia, o que é bem diferente — afirma.
Os defensores da lei acham que a Comissão de Ministros poderá tirar essas dúvidas e alterar decisões da comissão técnica. No Ministério do Meio Ambiente, não se tem esperança disso. Primeiro, porque a comissão de ministros não pode fazer pesquisas, entrar no mérito das decisões; será sempre um órgão político. Segundo, porque a lei deu poderes demais à comissão técnica que foi criada para ser consultiva e agora tomará todas as decisões.
O artigo 16 da nova lei é claro quando diz que ela decide em “última e definitiva instância” se há ou não riscos de degradação ambiental e se é ou não necessário o licenciamento ambiental. E, além disso, depois que tomar uma decisão não poderá revê-la.
O Brasil virou um dos maiores produtores de inúmeros produtos agrícolas, tem um agronegócio competente, competitivo e agressivo. O ajuste externo, que dá segurança ao país agora, foi principalmente conquistado com o superávit comercial puxado pelo agronegócio. Mas, ao mesmo tempo, tem entre seus ativos uma extraordinária biodiversidade, que deveria preservar. O Ministério da Agricultura comemora o impulso nos negócios, a partir da nova lei. O Ministério do Meio Ambiente teme que não esteja garantida a convivência entre espécies transgênicas e naturais a partir de hoje. O dilema, como se vê, é mais complexo do que no caso das células-tronco.
Entrevista:O Estado inteligente
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