Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 04, 2005

Jornal O Globo - Miriam Leitão Diferente

Muita gente nos critica. Diz que jornalista só gosta de notícia ruim. Dá pouco destaque para o bom, para o certo. Não é bem assim; mas parece. Quero contar sobre a noite que nós aqui do jornal tiramos só para aplaudir. Este ano, no centro de tudo, na festa do Faz Diferença, estava uma cidadã que devolveu um benefício público porque considerou que havia quem mais precisasse.
Um gesto simples. Ione era a mais assustada com a dimensão que o fato tomou. Deveria ser normal, mas o Brasil não tem sido normal. Um dos nossos maiores flagelos é o desvio do dinheiro público. Não apenas desvio no sentido de corrupção, mas pela escolha por políticas públicas e benefícios que vão para os não-pobres.


Aliado a isso, tem outro defeito a ser combatido: a mania de querer tirar uma casquinha nos programas para os pobres. Os muitos casos recentes de benefícios como o Bolsa Família apropriados por funcionários de prefeituras, por famílias com carro na garagem formam a legião dos anti-Ione. Precisamos “ionizar” o Brasil: explicar que é preciso abrir mão de vantagens, devolver benefícios, porque eles têm que ser destinados aos mais pobres. É a eles que o Brasil deve.

Ione estava nervosa. Lá do palco, eu via que ela mostrava para o marido, Anquilino, como estava suando. Ela contou a uma das nossas diretoras, Sandra Sanches, que não ia conseguir falar. Sandra aconselhou: “Fale com o coração.” Aplaudida de pé, Ione parecia querer se encolher. Hesitou antes de ir para o microfone e dizer a frase que é outra lição:

— Muito obrigada pelos que acreditaram que no Brasil ainda existe jeito.

Nos textos escritos sobre ela, sempre aparece a qualificação de “dona-de-casa”. Todo o respeito por donas-de-casa, mas ela não estava lá por manter a casa limpa, mas porque deu uma lição simples e profunda ao país. Por isso, foi apresentada por Ancelmo Gois e por mim como é: cidadã brasileira.

Lygia Bojunga, escritora, no seu discurso de agradecimento, falou com ênfase que estava feliz de estar sendo premiada junto com ela. Lygia ganhou, no ano passado, um prêmio internacional que é uma das maiores honrarias da literatura infanto-juvenil.

O ministro Celso Amorim foi indicado pelos jornalistas da economia pelo seu trabalho à frente da diplomacia comercial, sua costura do G-20, sua política externa. Celso Amorim agradeceu as críticas que, segundo ele, ajudaram. Admite que tenta convencer os críticos, e que nem sempre tem sucesso. Fiquei feliz em saber que ele entende crítica de forma democrática.

E por falar nisto: quem imaginava ver jornalistas aplaudindo e entregando prêmio para diretor da Polícia Federal ou para general? Enquanto aplaudíamos tanto Paulo Lacerda quanto o General Heleno Ribeiro, fui identificando na platéia os muito colegas presos na ditadura. Agora, mudamos todos e mudou o Brasil. O General Heleno merece palmas por lutar por paz e democracia num país miserável; o diretor Paulo Lacerda, por comandar uma gestão eficiente no combate à corrupção. O presidente do TRE, Marcus Faver, ganhou palmas pelo mesmo impulso da limpeza: a última eleição não sujou a cidade, e ele ainda tentou impedir de concorrer quem tinha ficha criminal. O desembargador disse que o Brasil é um país estruturalmente limpo.

Regina Casé e Ancelmo tiveram um diálogo inacreditável no palco sobre a luta de ambos contra a mania do carioca de dispensar o uso de banheiro nas suas premências. Ao contrário desta constrangida coluna, eles falaram com palavras diretas da esquisita mania de certos homens desta terra. O resultado foi um momento de puro humor.

Regina divertiu com outros comentários, mas, ao agradecer a tantos parceiros de tantos programas, inclusive a Darlan e Douglas, do Cidade dos Homens, o que ficou claro é a incrível versatilidade dessa artista. Eva Wilma, outra artista que nos emociona há tanto tempo, brincou dizendo de si mesma que achava que tinha futuro. Que belo presente, Eva Wilma! Adriana Calcanhoto ganhou por ter criado um disco para crianças que mostrava respeito aos menores e com o qual conquistou qualquer idade.

Na educação, Ivaldo Bertazzo tem feito diferença há muito tempo por unir arte e resgate social. Na responsabilidade social, quem ganhou foi a Fundação Banco do Brasil, dirigida por Jacques Penna. E eu perdi uma ótima oportunidade de me jactar do conterrâneo: ele é mineiro de Caratinga. Ziraldo não perderia a chance.

As lindas roupas, bordadas ou não, de Isabela Capeto foram a diferença na moda. E, por falar em beleza, Walter Salles foi o ganhador na categoria cinema pelo belo “Diários de Motocicleta”. Só no Brasil ocorre de dois filhos de um banqueiro virarem cineastas. E de extrema sensibilidade.

Niède Guidon, arqueóloga, luta para preservar um parque, de frágil beleza, precioso patrimônio, ameaçado por todos os lados. “O homem primitivo decorou uma das mais belas paisagens do mundo”, definiu Niède ao falar do parque que tenta preservar, no meio do Piauí.

Todos de pé aplaudiram também Clodoaldo Silva, guerreiro das águas, superador de limites. Ele subiu com suas muletas e sua espantosa coragem ao palco e nos disse que sabe que hoje é símbolo e quer usar isso. Procura parceiros para a próxima batalha. Ele quer atuar na área de inclusão social de crianças: “com deficiências ou não”.

Foi uma noite assim, diferente. Em que nós jornalistas exibimos um lado diferente, tão verdadeiro quanto o lado nosso de cada dia.

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