NOVA YORK. Não é apenas por curiosidade intelectual que o ministro José Dirceu está lendo tudo o que encontra pela frente sobre a secretária de Estado americana Condoleezza Rice, com quem se encontrará em Washington. Dirceu quer “entender a cabeça dela” porque, por um desses movimentos só explicáveis na política, seu passado revolucionário acabou transformando-o em um canal de negociação diplomática importante para os Estados Unidos, nesse momento em que a América do Sul vê se consolidar, com a posse de Tabaré Vásquez no Uruguai, uma tendência política à esquerda em vários de seus governos.
O chefe da Casa Civil também assumiu, por determinação do presidente Lula e dentro da coordenação do governo, um papel mais ativo em relação à integração da América do Sul, e foi para preparar a adesão da Argentina ao esforço conjunto de integração da região, que já une Brasil e Venezuela, que esteve em Buenos Aires antes de viajar aos Estados Unidos.
Dirceu vê a América do Sul em um momento de rara oportunidade para o engrandecimento político e econômico da região, a começar pelo Mercosul, que o novo presidente uruguaio quer fortalecer. O projeto brasileiro é ambicioso, e tem como objetivo criar, com a união do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Pacto Andino (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), um pólo econômico que se iguale politicamente aos blocos já existentes na Comunidade Européia, nos Estados Unidos com a Nafta e o grupo de países asiáticos.
Antes de assinar os convênios com a Venezuela, semana passada, para a construção de metrô em Caracas e fábrica de lubrificantes, o Brasil já havia feito a mesma coisa tanto com o Peru quanto com a Colômbia, para financiamentos de estradas e outros meios de integração regional. E tem especial atenção aos acontecimentos na Argentina, que continua sendo um parceiro comercial dos mais importantes com a recuperação econômica em curso. Apesar das divergências nas regras do Mercosul.
Todos os projetos assinados e os já encaminhados são de interesse da economia brasileira, como a ligação viária com o Pacífico, facilitando nossas exportações para a Ásia e costa oeste americana. O governo considera que os países da América do Sul terão mais força política se negociarem com os Estados Unidos em conjunto, na formação da Alca, além do fato de que a integração econômica sul-americana tornaria a região menos dependente no comércio internacional.
O projeto de integração tem, portanto, um forte cunho político que, oficialmente, não é de confrontação com os Estados Unidos. O Brasil, no entanto, vai montando sua rede de influências na região, que o coloca em uma posição de formalizar a liderança política. O governo brasileiro está usando, por exemplo, o sistema de vigilância da Amazônia (Sivam) para se interligar a países como o Peru e a Colômbia, montando um padrão de segurança contra o narcotráfico e o terrorismo que tem um forte apelo político na região.
O ministro José Dirceu, desde o início do governo Lula, vem insistindo na criação de um cargo federal para controlar o combate ao narcotráfico, e acha que esse é um dos principais problemas a serem enfrentados pelos governos da região, questão que também é do interesse dos Estados Unidos. Entre as medidas que o Brasil está tomando para ter uma atuação mais ativa no combate ao narcotráfico, está o maior controle das fronteiras e a organização do aparato legal para combater a lavagem de dinheiro. A adoção da Lei do Abate, que permite à Força Aérea derrubar aviões que entrarem no Brasil de maneira ilegal, foi negociada com os governos vizinhos e com os Estados Unidos.
Contudo, para contrabalançar esse poder na região, e enfraquecer a negociação do Mercosul, os Estados Unidos estão fazendo acordos bilaterais com todos os países vizinhos, com exceção da Venezuela, onde a consolidação do poder de Hugo Chávez não agrada aos americanos. O governo brasileiro, porém, considera que a união com a Venezuela é tão estratégica para o Brasil quanto a com a Argentina, devido ao petróleo.
O papel da Petrobras nesses acordos é importante a longo prazo porque, segundo Dirceu, a estatal brasileira está se transformando em uma empresa de energia, e não apenas de petróleo, e pode vir a desenvolver, em parceria com outros países, programas de biodiesel e álcool.
O problema é que Chávez vê essa parceria principalmente na sua concepção antiamericana, o que não é a visão brasileira. Mas a atuação diplomática do Brasil, desde a criação do Grupo de Amigos da Venezuela visa a uma saída democrática para a crise no país. O grande instrumento financiador dessa integração sul-americana, o BNDES, criou até mesmo uma diretoria para a América do Sul.
O ministro José Dirceu defende, e não é de hoje, a integração da América do Sul como uma prioridade da política externa brasileira, mas não apenas a integração física e de infra-estrutura. O objetivo de longo prazo seria uma moeda única e até mesmo um Parlamento do Mercosul, a exemplo do que acontece na Europa.
Assim como o presidente venezuelano Chávez defendeu esta semana uma cooperação militar com o Brasil, o ministro Dirceu já defendeu até mesmo a “integração militar” da América do Sul. O acordo de venda de aviões militares brasileiros para a Venezuela, por exemplo, quase provoca um curto circuito com Washington há poucas semanas, quando um porta-voz do Departamento de Estado expressou sua “preocupação”.
Mas, segundo o embaixador brasileiro Roberto Abdenur, a questão foi prontamente esclarecida por enviados da Casa Branca, que negaram essa preocupação, mesmo porque recentemente os Estados Unidos haviam vendido aviões para a Colômbia .
As relações do ministro José Dirceu com Cuba não são segredo para ninguém. E dentro do quadro de perspectivas de alianças políticas e econômicas dos governos de esquerda da América do Sul, também a relação desses países com Cuba afeta as relações dos Estados Unidos na região. O novo presidente do Uruguai, Tabaré Vásquez, por exemplo, já anunciou que vai reatar relações diplomáticas com Cuba, que ontem pediu oficialmente para ser membro do Mercosul.
É nesse ponto que José Dirceu entra, com seu passado de refugiado político em Cuba e as relações de amizade que mantém com os principais governantes do país, a começar com Fidel Castro.
Depois de provocar desconfianças no governo Bush, pelo seu passado revolucionário, Dirceu foi transformado em uma espécie de interlocutor especial. Ele tem um certo orgulho juvenil do passado revolucionário, a ponto de discorrer com fluência sobre a leveza e a precisão do fuzil AK-47, que o governo venezuelano está comprando da Rússia em grandes quantidades, preocupando o governo americano.
Também não parece preocupado com as críticas que o governo brasileiro vem sofrendo por ter mandado a Abin, nossa agência de informação, treinar alguns homens em Cuba: “O serviço secreto cubano é dos melhores do mundo, junto com o de Israel e o da Rússia”, diz Dirceu casualmente, logo ele, apontado pelos adversários como um ex-agente de informação cubano.
Segundo Dirceu, apesar de todo o bloqueio econômico e político, até mesmo a CIA troca informações com o serviço secreto cubano em matérias de interesse comum, como o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro: “Serviço secreto é assim mesmo, troca informações. Se você tem informação, recebe de volta. Aí não tem nada de política”.
O ministro José Dirceu acha que não é possível imaginar o futuro da América Latina sem os Estados Unidos, mas não se pode deixar que os Estados Unidos tenham pretexto para entrarem na América do Sul. Ele cita como fator de grande preocupação na região a luta da Colômbia contra o narcotráfico, e diz que os países da América Latina têm que se unir para ajudar nesse combate, para não dar espaço para que a presença das tropas americanas seja permanente na região.
Dentro desse contexto, Dirceu destaca a importância da liderança brasileira na região, para negociar, como fez recentemente, conflitos entre vizinhos, como o que estremeceu as relações da Venezuela com a Colômbia. Dirceu acha que o seqüestro de membros das Farc dentro da Venezuela parece mais uma provocação de grupos políticos interessados em perturbar a colaboração entre os dois países, que sempre foi muito boa, segundo ele.
O ministro Dirceu garante que o governo brasileiro tem uma relação muito boa com a Colômbia, mesmo com o passado de ligações políticas do PT com as Farc. Antes mesmo de Lula ser eleito, Dirceu fez um contato com a embaixada colombiana em Brasília para afiançar que a política oficial do futuro governo seria a do Estado brasileiro, não a do PT.
A guinada à esquerda dos países da América do Sul reforça uma tese antiga de Dirceu, de que as forças populares são poderosas no continente e que é preciso estar atento às políticas sociais. O relacionamento com os Estados Unidos é um tabu nas esquerdas, mas o governo brasileiro já definiu que a “não política” com os Estados Unidos é uma saída insuficiente para o Brasil. Há um entendimento entre as autoridades brasileiras e americanas de procurar os pontos de concordância, evitando temas que são polêmicos, como por exemplo, a questão cubana.
Essa situação evoluiu internamente, e talvez por isso a tentativa de criar um canal político com Dirceu. O governo brasileiro defende a integração de Cuba aos organismos internacionais, e acha que o bloqueio econômico é uma política errada dos Estados Unidos, que não entendem que quanto mais abertura comercial, quanto mais turismo em Cuba, maior abertura política ocorrerá.
Essa posição brasileira, que já provocou muitos mal-entendidos diplomáticos com os Estados Unidos, está tendo agora uma aceitação maior internamente nos Estados Unidos. Já há quem anteveja a possibilidade de o embargo comercial ser levantado pelo próprio Congresso americano, diante da possibilidade de união de republicanos de estados agrícolas, interessados no aumento do comércio, com os liberais democratas.
O fato é que pessoas influentes na política americana, como a ex-embaixadora no Brasil Donna Hrinak, hoje consultora para comércio internacional de uma firma de advogados em Miami, consideram que os Estados Unidos têm que ter uma política de fortalecimento das forças democráticas em Cuba para estarem preparadas para a fase pós-Fidel Castro.
Em artigo na edição iberoamericana da “Foreign Affairs”, Donna Hrinak lembra que o Brasil, que durante muitos anos se recusou a assumir formalmente uma posição de liderança regional na América Latina, fazendo uma política de aproximação restrita a México e Argentina, começou a desenvolver uma política de maior aproximação a partir da primeira reunião dos presidentes de países da América do Sul realizada em 2000 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O governo Lula aprofundou essa estratégia, e pela primeira vez o Brasil assume um papel de liderança regional explicitamente. Para Donna, os Estados Unidos deveriam entender que colaborar com o Brasil em uma política de fortalecimento das relações com a América Latina seria uma maneira criativa de defender seus interesses na região, sem precisar desviar o foco das questões internacionais mais urgentes, como o Oriente Médio.
Entrevista:O Estado inteligente
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