NOVA YORK. O chefe da Casa Civil, José Dirceu, está aqui em Nova York, debaixo de uma tempestade de neve, falando para banqueiros de superávit primário, dívida pública e balança de pagamentos, enquanto no Brasil a temperatura política pega fogo. Estranha atitude essa, de quem continua sendo o parâmetro político da maioria petista. Não que eu tenha a impressão de que vai dar em alguma coisa mais grave o pedido de investigação feito pelo PSDB contra o presidente da República, devido Lula ter revelado em público, no que classificou de “discurso atravessado”, que encobriu supostas trapaças do BNDES nas privatizações.
O palavrório presidencial corre sempre o sério risco de virar galhofa, e os tucanos só estão jogando o jogo oposicionista conforme estabelecido pelo PT nos muitos anos de oposição raivosa, quando nada menos que 21 pedidos de impeachment foram parar na Mesa da Câmara nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso.
Mas que a situação criada na Câmara, com a vitória do sacerdote do baixo clero Severino Cavalcanti, muito se parece com a revolta que aconteceu contra o governo Collor, isso se parece. O motivo desencadeador é o mesmo: poder mal compartilhado. Os colloridos guardavam para uns poucos todo o butim que conseguiam pilhar, e a partilha não chegou nem mesmo ao irmão do então presidente.
Com isso, alijaram os membros do baixo clero do festim que promoviam, e foram pilhados em flagrante delito, dando margem à punição política do impeachment. Embora as provas factuais dos delitos não tenham sido apresentadas corretamente à Justiça, dando chance a que o ex-presidente se livrasse de condenações penais, restaram as penas morais, que até hoje o perseguem, impedindo-o de retornar à vida política pelo voto popular.
O caso do PT é semelhante, mas apenas na dimensão política. Não se fala aqui de qualquer tipo de malversação de dinheiro público, mas apenas naquela divisão de poderes que geralmente se transforma em nomeações para os indicados dos aliados políticos. Ao contrário, aqui, se houve alguma tentativa de corrupção, ela foi vetada pelo governo, como quando o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, se negou a liberar verbas para emendas criadas artificialmente na Comissão de Orçamento.
Justiça se faça: o PT, embora às vezes pareça até mais afoito que o PSDB ao fazer as alianças mais estapafúrdias, como quando parecia querer dar ao PTB um lugar de destaque no governo, ou quando namora o PMDB, acaba não entregando o que promete, pelo menos não inteiramente. É uma política esquisita, não resta dúvida, que dá a impressão de ser mais fisiológica do que na verdade é. Talvez até por incompetência.
A tal ponto que o presidente Lula teve a ousadia de dizer em público que confiava tanto no deputado Roberto Jefferson que seria capaz de entregar-lhe um cheque em branco. Ainda bem que era apenas retórica, conversa mole para boi dormir. Não deu o cheque nem o espaço que o PTB queria, o que o fez liderar a revolta das bases, junto com o PP. Fisiologismo que é bom para esse tipo de negociação, o PT guarda apenas para os seus apaniguados.
A derrota na Câmara dos Deputados traz também na sua raiz a desagregação partidária promovida pelo PT desde o início do governo Lula, manobra política utilizada pelo Palácio do Planalto na tentativa de montar uma base parlamentar “inexpugnável” de apoio ao governo. Essas barafundas políticas só acontecem porque o governo federal tenta acionar cada vez com mais força seu rolo compressor em busca da hegemonia política, como se ela pudesse ser fabricada esvaziando a oposição e inflando os partidos da base aliada.
O PFL, que começou a legislatura com 84 deputados federais, foi minguando e já está com apenas 61. O PSDB, que elegeu 70 deputados, tem hoje 51. Em compensação, os partidos da base governistas incharam: o PTB começou com 26 deputados e hoje tem 49. O PL elegeu 26 deputados e hoje tem quase o dobro: 50. O PMDB, que ninguém sabe de que lado é, esteve por momentos com a maior bancada da Câmara, mas voltou a ter 90 deputados, um a menos que o PT, que elegeu 91 deputados federais e hoje tem a bancada do mesmo tamanho, apesar das expulsões.
Agem como se fosse também possível deixar o PT “limpo” nessa operação, sem se contaminar com o chamado baixo clero, aqueles deputados que mudam de partido como quem muda de camisa, ao primeiro aceno do governo. Foi esse baixo clero, em essência conservador, que inicialmente reagiu à tentativa do governo de impor para a presidência da Câmara um candidato com forte acento esquerdista.
Os oposicionistas, como o PSDB e o PFL, votaram em Severino sem levar em conta, como dizia o prefeito de São Paulo, José Serra, os efeitos desestabilizadores que uma derrota como essa significa para a tal governabilidade. Ou talvez mesmo levando em conta, mas com gosto de sangue na boca, como queria Fernando Henrique. Outros, que não fazem parte do baixo clero nem da oposição, foram atrás da candidatura mais desafiadora porque queriam isso mesmo, ver o Planalto em palpos de aranha, precisando de ajuda política.
É preciso ficar claro que a vitória de Severino não foi uma derrota do PT, como tentou fazer crer Lula: foi uma derrota do governo. E ela prenuncia as dificuldades que Lula vai ter para montar uma coalizão para disputar a reeleição. Ao escolherem Severino, os insurgentes deixaram claro que a questão política deles tem uma dimensão acima dos partidos, que graças à ação desestabilizadora do governo, perderam a importância que deveriam ter.
E perderão ainda mais se a reforma política do baixo clero vingar, com o fim da verticalização e a redução das cláusulas de barreira.
Entrevista:O Estado inteligente
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