Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 15, 2005

Folha de S.Paulo - Janio de Freitas: Um dia em vinte anos - 15/03/2005

Vinte anos na vida de um país, dizem, são uma poeira. Mas, nos vinte anos desde que os militares bateram em retirada, tivemos os mandatos presidenciais de Sarney, de Collor/Itamar, os dois de Fernando Henrique e o de Lula já passado da metade. Uma poeira suficiente para fazer muito por um país, e para deixar de fazer.
Estes vinte anos igualam-se, quase exatamente, à duração do domínio militar. Aí está, portanto, uma primeira possibilidade de comparação. Dispensadas as obviedades relativas a direitos e liberdades, no regime anterior e no atual, as duas décadas de cada um contrastam também sob outro aspecto: em realizações estritamente materiais, as obras genericamente chamadas de infra-estrutura, o país foi muito mais beneficiado pela ditadura.
Os anos dos dois regimes voltam, porém, a identificar-se quando se considera o mais dramático aspecto da persistente fisionomia brasileira: tanto sob os militares como sob os civis, as condições sociais no Brasil agravaram-se indecentemente. Ou criminosamente. O regime civil disfarça melhor, com os pingadinhos dos Comunidade Solidária, Fome Zero, Bolsa-Família, Bolsa-Escola e outras adaptações da velha porta de igreja. Mas a recusa desumana a medidas por melhor distribuição da renda, e outras de promoção social verdadeira, tem sido equivalente nos dois regimes.
A favor dos últimos vinte anos o que há de notável é a evolução do Estado de Direito. Nada a ver com a qualidade moral, intelectual ou cívica da classe política, cuja degradação, naquelas três propriedades, parece não ter limites. Mas o que haja de errado e de imoral nas relações entre política e sociedade, entre política e administração, é de responsabilidade exclusiva dos poderes civis operadores das instituições. Uma das muitas dificuldades do governo Sarney, lançado na condução de um processo de transição para o qual não se preparara, foi o esforço de comandos do Exército para preservar seu poder arbitrário, do que deu prova, entre tantos fatos, o assassinato de três operários a título de repressão a uma greve em Volta Redonda. Com o tempo, novos comandos restabeleceram a ordem longamente perdida nos quartéis.
Por seu lado, a sociedade vem acumulando, no decorrer destes vinte anos, uma transformação crescentemente negativa. No ponto de partida do novo regime, Sarney foi onerado por exigências desproporcionais às circunstâncias, provenientes, entre os políticos vitoriosos, da reserva suscitada por seu passado na Arena e no PDS; e, por parte da opinião pública, pela ansiedade de ver atendidas as aspirações perversamente reprimidas por tanto tempo. Sarney teve dificuldade de manobrar sob o cerco dessas pressões, e o círculo dos seus próximos só o atrapalhou mais, com a reprodução freqüente de práticas de improbidade protegidas sob o arbítrio ditatorial, mas não no regime de liberdades. Dou testemunho, por sinal, do respeito pessoal de Sarney por essas liberdades no seu governo.
De então para cá, o nível de exigência da sociedade vem caindo a ponto de ser, hoje, não mais do imperceptível. Eleitos podem mandar ao lixo seus compromissos com o eleitorado. Presidentes podem governar por decretos idênticos aos da ditadura, bastando batizá-los de medidas provisórias. Impostos, juros, obstáculos ao crescimento, desconsideração total do Orçamento aprovado pelo Congresso, apropriação progressiva de verbas que caberiam aos Estados federados -tudo pode ser feito à revelia da sociedade, contra a sociedade, e é como se nada de anormal houvesse.
Não é exatamente uma democracia que se está construindo desde um 15 de março muito diferente de hoje. Aquele era um dia feito de esperanças. Não de conformismo.

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