Um talento em estratégia e jogos políticos. A política era sua vida, paixão, prazer. Divertido, tratava até a morte com bom humor. Prevendo rápido esquecimento de famoso político que morrera: "O Brasil tem os melhores cemitérios do mundo". Em conversa no Senado sobre o epitáfio preferido: "Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves".
Eleito em 15 de janeiro de 1985, Tancredo trabalha sem parar. Muitas demandas, pressão, formação da equipe, diretrizes. Aos 75 anos, faz extenuante viagem de 16 dias ao exterior, em duro inverno. No início de março, anuncia o ministério, dá entrevista coletiva. Na cabeça, rumos e prioridades. Ocupou os mais altos cargos de Minas Gerais e da República. De vereador a ministro da Justiça, primeiro-ministro e governador. Esperança é seu outro nome para o povo.
No auge, dono de vasto capital político, o drama pessoal. Como numa tragédia grega, oculta doença abdominal que supõe ser grave. Precisa ser operado, mas teme crise político-militar se não tomar posse. Recebeu informação que o governo negará posse ao vice, José Sarney. Decide ir em frente. Razões de Estado, amor à causa democrática, necessidade política, imperativo jurídico.
Era gato escaldado. O golpe de 1937 tomara seu mandato de vereador; em 1954, estava no olho do furacão que levou ao suicídio o amigo e chefe Getúlio Vargas; em 1961, foi bombeiro, curinga e solução para implantar o parlamentarismo que adiou o golpe militar; em 1964, pulou para a trincheira da oposição e combateu a ditadura até o fim.
A doença avança. Automedica-se, recorre a médicos. Novos exames. Há perigo de morte, mas mantém a disposição de risco e sacrifício.
Começo da noite de 14 de março de 1985, véspera da posse. Mal-estar, calafrios. Febril, pede os atos de nomeação dos ministros ao neto Aécio Neves e assina. Por volta das 20h, de robe e chinelos, entra caminhando no Hospital de Base de Brasília. Pensa que é para tomar soro com antibióticos. A notícia se espalha, assusta o Brasil. Boataria infernal, suspeitas, tristeza. Acaba a festa, começa a tragédia. A Nova República corre para o hospital. Proposta de cirurgia imediata. Tancredo: "Eu peço pelo amor de Deus: me deixem até amanhã e depois de amanhã façam de mim o que vocês quiserem. Mas eu tenho a obrigação. É um compromisso que eu tenho. Eu sei de fonte fidedigna que o Figueiredo não dá posse ao Sarney".
Chama o filho, Tancredo Augusto: "Eles estão mesmo querendo me operar, meu filho. Mas eu não quero, não posso agora. Só depois da posse. Vá lá e converse com o Pinheiro". O filho vai ao médico, volta aflito: "Olhe, pai, não tem solução. Diz o Pinheiro que não é uma operação complicada e que não há outro jeito. Perguntei-lhe o que acontece se o senhor não se operar. E ele me respondeu: "Se o seu pai não se operar, vai morrer'".
Tancredo só cede ao ter certeza da posse de Sarney. Instrui Francisco Dornelles, amigo, sobrinho e futuro ministro da Fazenda: "Mas tem que ser o Sarney, Dornelles!". Sabedoria e pragmatismo. A posse do vice confirmaria os mandatos. Sem Sarney, se o impedimento demorasse, poderia haver nova eleição.
A poucos metros de Tancredo, a cúpula do novo governo. Análise da Constituição, consultas a juristas. Miúda formalidade impede a posse de um presidente amado pelo povo, regularmente eleito e lúcido. Não teria sido lógico e justo empossá-lo no hospital?
Sarney e Ulysses conversam, mostram grandeza. Sarney diz que deseja tomar posse com Tancredo e se retira. Ulysses, anos depois: "Segui as instruções do meu jurista. O meu "Pontes de Miranda" [general Leônidas] estava lá, fardado, e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney". Na maca, coberto dos pés à cabeça, Tancredo passa rumo à cirurgia e à tragédia.
Brasília, 15 de março de 1985, três da madrugada. A operação é considerada um sucesso. Alegria, alegria. O achado cirúrgico? Um leiomioma, tumor benigno. Fora, os entendimentos políticos se completaram. O general Leônidas telefona para Sarney, conta que está tudo resolvido. Despede-se assim: "Boa noite, presidente".
Às 10h, Sarney, indormido e emocionado, toma posse no Congresso e segue para o Palácio do Planalto. Figueiredo não passa a faixa. Saíra pouco antes pela porta dos fundos. Ponto final do ciclo autoritário, início da redemocratização. Sarney empossa os ministros. Define: "Os nossos compromissos, meus e dos senhores, são os do nosso líder, do nosso comandante, do grande estadista Tancredo Neves, nome que constitui a bandeira de união do país".
O Brasil está em paz, o povo torce e reza. Mas Tancredo entra numa senda sem volta e mais 37 dias de martírio. Falhas médicas e hospitalares, complicações, infecção, uma segunda cirurgia, hemorragia interna, transferência para o Incor, em São Paulo. Mais cinco cirurgias, a septicemia e a morte em 21 de abril de 1985, que fez o Brasil inteiro chorar.
Ronaldo Costa Couto, 62, economista e escritor, doutor em história pela Sorbonne (França), foi ministro do Interior e ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República (governo Sarney). É autor de, entre outros livros, "Tancredo Vivo - Casos e Acaso" (ed. Record, 1995)
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