Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 13, 2005

VEJA on-line -André Petry O país do desamparo


"Um jovem tem a vida destruída num
hospital público, sua família conhece
a tragédia da deficiência mental, a
Justiça age com a consciência social
dos eremitas
e o Estado atua com a
solidariedade
dos ególatras"

Saiu nos jornais: finalmente, a Justiça brasileira concedeu a um rapaz o direito de receber uma indenização do estado de São Paulo por ter sido equivocadamente submetido a um tratamento de choque num hospital psiquiátrico, tendo ficado com graves seqüelas. A indenização deverá cobrir todos os gastos com tratamentos médicos nos últimos dezesseis anos e lhe renderá pensão mensal vitalícia. Foi o que deu nos jornais e, apresentada assim, a notícia parece boa.

Será?

Em 1981, na flor de seus 21 anos, Sérgio Ricardo Junior, caçula de cinco irmãos, foi internado no Juqueri, hospital psiquiátrico público em Franco da Rocha, São Paulo. Devia ter recebido tratamento contra dependência química. Em vez disso, foi submetido a uma terapia de choque, tomou tanto remédio que beirou o envenenamento e entrou em estado de coma prolongado. Quando recobrou a consciência, Sérgio Ricardo Junior tinha uma atrofia cerebral irreversível. "Era como se ele tivesse nascido naquele momento", diz uma de suas irmãs, Sônia Maria Ricardo Roessle. Os pais do rapaz iniciaram a dolorosa maratona de cuidar de um filho com deficiência mental, particularmente árdua para famílias humildes como a de Sérgio Ricardo.

Antes da fatídica internação no Juqueri, ele sofria com o drama das drogas, mas ainda estudava – cursava a 8ª série – e trabalhava como office-boy numa empresa. Se superasse a dependência, teria uma vida inteira pela frente. No hospital psiquiátrico, ceifaram sua vida. Passou por várias casas psiquiátricas. Numa delas, seu par de tênis, com o uso prolongado, chegou a apodrecer nos seus próprios pés. Em 1989, seus pais entraram na Justiça pedindo indenização. Tinham a imensa esperança de que tal assistência financeira garantisse a vida do filho. Em 1992, a mãe de Sérgio Ricardo morreu. Oito anos mais tarde, seu pai também morreu.

Só agora, dezesseis anos depois, a ação foi concluída. Em termos. A Justiça entendeu que, sim, ele tem direito à indenização, mas resta uma dúvida: qual será o valor? "É possível que a definição do valor ainda leve uns cinco ou seis anos", calcula Thiago d'Aurea Cioffi Santoro Biazotti, um dos advogados de Sérgio Ricardo. Hoje, Sérgio Ricardo tem 45 anos. Terá 50 ou 51, quando finalmente receberá o que merece? Não é bem assim. Quando as partes chegarem a um consenso sobre o valor, o governo de São Paulo terá de pagar o chamado precatório, mas o governo de São Paulo não paga um precatório há anos...

Sérgio Ricardo tem idade mental de 5 anos. Adora ir a churrascarias, tomar sorvete e comer chocolate, como qualquer criança. Graças ao convênio médico de outra irmã, Sérgio Ricardo vive internado num bom hospital psiquiátrico em Itapira, em São Paulo. Mas a irmã está para se aposentar e, quando isso acontecer, Sérgio Ricardo perderá o convênio – e a família não tem como pagar ao hospital.

Em resumo: um jovem tem a vida destruída num hospital público, sua família conhece de perto a tragédia da deficiência mental, a Justiça age com a consciência social dos eremitas, o Estado atua com a solidariedade dos ególatras – e nada muda substancialmente. À exceção da família, alguma instituição que cruzou a vida de Sérgio Ricardo merece o nome que tem? Hospital? Justiça? Estado?

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