Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 26, 2012

Muitas novidades - 2 - João Ubaldo Ribeiro

O Estado de S.Paulo - 26/02/12


A história do pai desnaturado que anunciei no domingo passado me foi
contada como verídica. Em Itaparica, ninguém mente, de maneira que com
certeza é mesmo. Trata-se do pungente drama vivido por uma família
cujo sobrenome, muito importante para o desenrolar dos acontecimentos,
aqui será mudado, para não causar problemas. Deu-se que, em certa
época, em certa localidade da ilha, um jovem pobre, mas muito
trabalhador e esforçado, subiu na vida e criou coragem para pedir em
casamento a filha mais nova dos Pimentéis, orgulhosa família
descendente de barões do tempo das baleias e de nariz franzido tão
empinado que o povo chamava a matriarca de "Quem Bufou?". A família
fez tudo para que o noivado não se concretizasse, mas a moça também
estava apaixonada pelo rapaz e não houve jeito. Acabou, para se livrar
de mais chateação, cedendo a uma exigência do velho "Foi Você"
(apelido natural para ele: a velha fazia cara de "Quem Bufou?" e
depois o velho vinha atrás, olhando para todo mundo com cara de "Foi
Você"). Tudo bem, haveria o casamento, mas nenhum dos filhos do casal
levaria o humilde "dos Santos", sobrenome do rapaz. Portariam o
orgulhoso Pimentel, mas nada de Santos.

Acontece que não contavam com a altivez e a astúcia do itaparicano.
Para não encompridar a história, o casal teve três filhos e o pai
botou neles os nomes de Fulano, Beltrano e Sicrano Pimentel. Dizem que
até hoje os parentes brigam para mudar os nomes, situação complicada
porque Beltrano e Sicrano se solidarizaram com o pai e registraram os
filhos mais velhos como Beltrano Júnior e Sicrano Filho. Já Fulano,
compreensivelmente, não fez a mesma coisa, porque puseram nele o
apelido de "De Tal", foi muita crueldade da parte da voz do povo.
Perguntavam "quem é aquele?" e respondiam "ah aquele é Fulano de Tal,
mas pode chamar de De Tal mesmo, que ele atende".

Ainda por cima, por uma circunstância linguística, o "De Tal", pois
que o pessoal da happy hour das seis da manhã embola um pouco as
consoantes, acabou percebido por muitos como "Dedal" e De Tal passou a
também ser conhecido pela alcunha de Dedal, o que - vejam como é esta
vida ingrata - levou certos preconceituosos a opinar que ele devia ser
costureiro de altas modas afrescalhadas e, portanto, falso ao corpo,
designação hoje politicamente incorreta, mas nessa época ser gay não
estava ainda na moda e o sujeito precisava ser muito macho para
encarar a complexa situação em que ele se viu.

O fato é que a história teve um final melancólico para Fulano, que, na
busca de sossego, se mudou para Nazaré das Farinhas, mas dizem que não
se deu tão bem, talvez por ter ganho novo apelido, deve ser sina. Lá
em Nazaré, me contam que ele é conhecido como Esse Menino e ninguém
sabe o nome dele - quer dizer, o sujeito não consegue ser nem Fulano,
nem De Tal, é duro. E comentam que o pai desnaturado acabou se
consumindo na cachaça, mas nunca arrependido do que perpetrou. Dizem
que, pouco antes de morrer, questionado sobre os nomes dos filhos,
teria respondido grosseiramente que eles ainda deram sorte, porque os
nomes iam ser Merdêncio, Caguêncio e Bostêncio, mas o escrivão sempre
achava que pegava mal e não fazia o registro, mesmo que a propina
fosse mais gorda que a de um alto governante federal.

Depois desse flagrante da vida real, passo ao também prometido furo de
reportagem. Em todos os meus anos de jornalismo, nunca dei um furo de
reportagem e fico até meio nervoso. Durante minha mais recente estada
na ilha, Zecamunista me visitou algumas vezes para conversar e
pronunciar algumas festejadas conferências, mas não deixou
transparecer nada de seus planos mais audaciosos. Parecia estar
inteiramente concentrado em aperfeiçoar o projeto de instituição do
Comitê Proletário de Defesa do Vernáculo, após ter tido algumas
experiências traumáticas, a última das quais envolveu uma pizza.

- É bem feito, que é para eu esquecer pizza, o pastelão gordurento que
italiano não come e é monopólio do imperialismo ianque e das
multinacionais de remédio contra azia! - bradou ele. - E ainda por
cima é delivery. O indivíduo pede que lhe entreguem uma pizza e o
sacaneta corrige: é delivery, senhor. É delivery a mãe dele, minha
pizza é entregue, eu faço questão de que ela seja en-tre-gue! Se o
governo não garante nada, pelo menos garanta que a gente vai continuar
a entender o que se fala. Eu vou contar o que esse infeliz me disse. A
pizza já estava demorando quase uma hora e aí eu liguei para reclamar
e sabem o que ele falou? Ele disse "Eu tinha colocado para o senhor de
que a delivery ia estar atrasando". Foi isso o que ele me disse e eu
quase vou lá com minhas pistolas para fazer justiça pessoalmente e
restaurar o primado do homo sapiens, é legítima defesa, estão
assassinando a língua portuguesa, são uns antropoides!

Somente no último dia foi que ele me chamou a um canto e confidenciou
o que agora é furo de reportagem: fará uma rara visita ao Rio de
Janeiro, algum dia do próximo mês. No seu dizer, "a mulher carioca é a
deusa no pedestal alcandorado de meu coração e a diaba na usina
lasciva de meus nervos tropicais", mas não é bem por ela que ele vem.
Pretende fazer no Rio o lançamento nacional dos Bem-te-vis da Pátria,
entidade cívica que congregará os brasileiros vigilantes, sob o grito
de guerra "Bem Te Vi, Ladrão!". Os militantes usarão camisetas
estampadas com um bem-te-vi de binóculo e carregarão um apito que
imita o canto do bem-te-vi. Cada vez que passar um político ladrão,
apito nele, assim como em estádios, auditórios e demais locais
públicos.

- Confio no Rio de Janeiro para salvar o nosso povo - disse Zeca ao
telefone, emocionado. - Ainda vamos ler no jornal que um safado desses
foi bem-te-vizado para fora do Posto 9.

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