O Globo 18/2/2012
Não havia, na certa, carnavalescos entre os que tentaram instrumentalizar a greve da polícia do Rio para sabotar o carnaval. Se houvesse saberiam que com o carnaval não se brinca. Essa instituição milenar que sobreviveu à travessia de oceanos, que, em nossas plagas, vicejou como em nenhum outro lugar graças à afortunada mistura de culturas e cores de peles de que somos feitos, não é, simplesmente, passível de sabotagem. Tampouco havia entre esses pescadores de águas turvas quem de fato conheça o povo carioca. Enquanto políticos oportunistas tentavam detonar a festa, sacudindo o estandarte do caos e manipulando a dura e, sem dúvida, mal paga vida dos policiais, o Bola Preta, sem medo de ser feliz, desfilou na sexta-feira em que a greve foi decretada, abrindo a folia e apostando na alegria contra os maus presságios. Essa respeitável agremiação popular que há 94 anos mostra um poder convocatório superior ao de qualquer político - põe dois milhões de foliões na rua - se alimenta do mistério do carnaval. Vive da fantasia, não só daquela que veste, branca com bolinhas pretas, mas da fantasia ancestral que renasceu a cada século, habitou tantas épocas e povos e que nos leva, durante alguns dias, a viver outras vidas, o que ajuda a suportar, no resto do ano, a áspera vida real. O caos dos blocos tem uma natureza que lhe é própria - é o caos do imaginário e nele é banal encontrar-se um sheik abraçado a uma índia de espanador. E segue o cordão que vai por aí, colhendo nas calçadas barbados de meia arrastão. É graça dada aos carnavalescos acreditar em fantasias, a eles é dada a pele colorida dos arlequins. Políticos de diminuta estatura, que pouco se importam com o destino do Rio, apenas com suas próprias medíocres ambições, esquecem que aqui vive um povo que encarna e leva a sério o carnaval. Mesmo se é para tudo se acabar na quarta-feira, a força do Bola, do Simpatia, do Boitatá e tantos outros é maior que a insensatez dos que cometeram um verdadeiro crime de lesa-cidade. No magistral filme de Nelson Pereira dos Santos, "A música segundo Tom Jobim", o desfile do maestro na Passarela do Samba, com seu terno branco e chapéu de malandro, como um imperador dos trópicos encarapitado em uma profusão de verde, sintetiza a glória que cobriu sua vida. Esse gran finale enche de orgulho o espectador: orgulho de Tom, de Nelson, do Brasil. Darcy Ribeiro, ele mesmo um personagem arlequinal, mineiro que dizia ser o Rio a mais bela província da Terra, a contragosto dos caciques das escolas de samba legou-nos o controverso Sambódromo. A passarela é hoje um panteão a céu aberto onde se inscrevem nas retinas e memórias de milhões de pessoas imagens e nomes dos que fizeram a história política ou cultural do país, homenageados e recriados pelo talento dos que continuam a escrevê-la. Pouco importa se a evocação de heróis deve menos aos historiadores do que a Stanislaw Ponte Preta. Ali se encontra de Ana Botafogo à Intrépida Trupe puxando uma comissão de frente. Ali se exerceu o gênio barroco de Joãozinho Trinta. Ali se produz o milagre das escolas de samba e sua multidão de figurantes, onde se misturam moradores de todos os bairros, onde a cidade, por algumas noites, se encontra, se recompõe e acena com a promessa do que poderia ser e ainda não é. Mas, como Darcy gostava de dizer; "havemos de amanhecer". Há uma beleza única nas madrugadas de carnaval, nos arredores da passarela, onde pássaros de todas as plumagens, as asas quebradas pelo cansaço depois de um voo cego sobre a Avenida, pousam no asfalto e adormecem. Manhã de carnaval. Era dever das autoridades proteger essa festa como o rico patrimônio cultural que ela é, luminosa fantasia com que o Rio se veste e se apresenta ao mundo. Sabotar o carnaval é, sim, um crime de lesa-cidade, no momento em que ela, mais do que nunca, busca afirmar-se e ser respeitada como metrópole global. Frente à chantagem, o comando da Polícia Militar deu uma prova de firmeza e sentido de responsabilidade: a ordem seria mantida. Quem saiu às ruas confiou no que lhe foi prometido. Ganhou a cidade. A alegria da população, o desejo de paz e a civilidade são valores que vão falar cada vez mais alto. A cultura, entendida como os modos de ser e de fazer de uma sociedade, irrompe na cena política como um fator determinante do futuro do Rio. Quem a despreza ignora o que move a cidade e por onde ela se está movendo. Não havia no bloco dos desmancha-prazeres ninguém capaz de avaliar a que ponto o Rio está mudando e para melhor. ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. E-mail:rosiska.darcy@uol.com.br.