Foi-se o tempo em que o Judiciário era o poder menos conhecido da
República. Que seu funcionamento e suas mazelas eram assuntos que
somente interessavam aos profissionais do Direito. Hoje - e é um fato
extremamente positivo - comenta-se sobre a Justiça em qualquer lugar.
Porém, pouco se fala sobre a luta travada no interior do Judiciário.
Os privilégios denunciados e comprovados estão restritos a uma pequena
parcela dos magistrados e funcionários. Nos juizados de primeira
instância, os juízes trabalham muito, sem a mínima estrutura
operacional e o número de funcionários é insuficiente para o bom
andamento dos trabalhos. E estão, até hoje, aguardando receber as
"vantagens eventuais", espécie de mais-valia macunaímica. Muitos
reclamam que suas sentenças condenatórias são reformadas nas cortes
superiores, lançando por terra todo o trabalho realizado, além de
jogar água no moinho da impunidade.
Em meio a este saudável debate, o Supremo Tribunal Federal se destaca.
Suas sessões são acompanhadas pela televisão como se fosse um reality
show. Os ministros adoram o som da própria voz. Os votos são
intermináveis. A maior parte da argumentação poderia ser resumida em
poucas páginas. Pior só o regimento interno. O parágrafo único do
artigo 16 reza que os ministros "receberão o tratamento de Excelência,
conservando os títulos e as as honras correspondentes, mesmo após a
aposentadoria". É inacreditável. O STF não deve ter recebido a notícia
que a República foi proclamada em 1889. Acredita que a denominação de
ministro é um título nobiliárquico.
Um bom exemplo de como funciona aquela Corte foi a apreciação da
contestação da Associação dos Magistrados Brasileiros acerca das
atribuições do Conselho Nacional de Justiça. A derrota da AMB foi
saudada como uma grande vitória. Foi ignorado o placar apertadíssimo
da decisão: 6 a 5. E que o presidente do STF, Cezar Peluso, foi um dos
vencidos (e quem assistiu a sessão deve ter ficado horrorizado com as
suas constantes intervenções, atropelando falas de outros ministros, e
esquecendo-se que era o presidente, e não parte ativa do debate). É
sabido que Peluso também é o presidente do CNJ e adversário figadal da
corregedora, ministra Eliana Calmon. Quase um mês depois da "vitória
democrática", nada mudou. O STF ainda não resolveu várias pendências
envolvendo a decisão, o que, na prática, pode retirar os instrumentos
investigatórios do CNJ.
O STF condensa os defeitos do Judiciário. O relatório das atividades
de 2011 serve como um bom exemplo. Diferentemente do ano anterior,
neste, Peluso deixou de lado o culto da personalidade. Só pôs uma
foto, o que, para os seus padrões, é um enorme progresso. Porém,
cometeu alguns equívocos. Como um Dr. Pangloss nativo, considerou a
ação do Judiciário marcada pela "celeridade, eficiência e
modernização". Entusiasmado, escreveu duas introduções, uma delas,
curiosamente, intitulada "visão de futuro". Nesta "visão", encerrou o
texto com uma conclamação política, confusa, desnecessária e descabida
para uma Suprema Corte: "O Poder Judiciário já não precisará lidar com
uma sobrecarga insuportável de processos, em todas as latitudes do seu
aparato burocrático, e poderá ampliar e intensificar sua valorosa
contribuição ao desenvolvimento virtuoso da nação, entendido não
apenas como progresso econômico, mas como avanço social, educacional e
cultural, necessários à emancipação da sociedade em todos os planos
das potencialidades humanas."
A leitura do relatório, confesso, causa um certo mal-estar. Por que
tantas fotografias do prédio do STF? Falta o que dizer? Quando se
espera informações precisas, o leitor é surpreendido por
esquecimentos. Um deles é sobre o número de funcionários. Segundo o
relatório, o tribunal tem como "força de trabalho disponível" 1.119
funcionários. Foram omitidos os terceirizados: "apenas" 1.305
trabalhadores! Também chama a atenção que entre as 102 mil decisões
daquela Corte, 89.074 foram, apesar de possíveis e previstas no
regimento interno (que deveria ser modificado), monocráticas, de um só
ministro (87%), das quais 36.754 couberam exclusivamente ao
presidente.
Mais estranhas são afirmações, como as do ministro Marco Aurélio.
Disse no programa "Roda Viva", da TV Cultura, que julgou, em 2011,
8.700 processos. Isso mesmo: 8.700 processos. Podemos supor que metade
tenha sido julgada no mérito. Sobraram 4.350. Vamos imaginar, com
benevolência, que cada processo tenha em média 500 folhas. Portanto, o
ministro teve de ler 2.175.000 páginas. Se excluirmos férias forenses
(e haja férias!), os finais de semana, os feriados prolongados, as
licenças médicas, as viagens internacionais, as sessões plenárias, o
ministro deve ter ficado com uns quatro meses para se dedicar a estes
processos. Em 120 dias, portanto, teve de ler, em média, 18.125
páginas. Imaginando que tenha trabalhado 14 horas diárias leu, por
hora, 1.294 páginas, das quais 21 por minuto, número invejável, digno
de um curso de leitura superdinâmica. E de olhos de lince (pensei até
em recomendar este "método" ao ministro Ricardo Lewandowski, que
declarou ter dificuldade de ler as 600 páginas com depoimentos sobre o
processo do mensalão).
É, leitor, cabe rir. Fazer o quê? Mas fique tranquilo e encha o peito
de ufanismo. Li no relatório que o STF está levando sua experiência
aos encontros internacionais "para emitir pareceres sobre aspectos
eleitorais da Albânia, serviço alternativo e regime jurídico do estado
de emergência da Armênia", sem esquecer "os partidos políticos do
Azerbaijão".
O STF vai "emitir pareceres" sobre aspectos da Albânia, Armênia e Arzebaijão
MARCO ANTONIO VILLA é historiador e professor da Universidade Federal
de São Carlos (SP).