A desigualdade brasileira está entre as dez mais altas do mundo apesar
de estar no piso das nossas séries históricas. Ela reflete como um
espelho o nível e as mudanças das diferenças de renda entre países do
mundo, em particular a queda da última década. Já a desigualdade
interna de outros países segue movimento inverso. Sobe antes e depois
da crise dos países desenvolvidos assim como no boom da China e da
Índia, como fez aqui nos anos 1960. O crescimento econômico da China e
Índia que abrigam metade dos pobres do mundo determina por si queda
inédita da desigualdade mundial no último século. Antes de entrar
nestes paralelos e paradoxos, vamos aos conceitos.
Primeiro, a função bem-estar social agrega o bem-estar individual de
cada membro da sociedade. Ele sintetiza num único número o bem-estar
geral da nação. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita é a medida de
bem-estar social mais usada. Numa sociedade de dez pessoas, se um tem
renda dez e os nove restantes têm renda zero; ou no extremo oposto se
dez têm a renda igual a um; o PIB é o mesmo. O PIB é uma medida de
bem-estar social que por construção não se importa com as diferenças
entre pessoas, apenas com a soma das riquezas produzidas.
No extremo oposto há outra função bem-estar que dá mais peso aos que
tem menos. Na sua construção ordenamos as pessoas pela sua renda,
depois atribuímos peso à renda de cada um proporcional a respectiva
colocação no ranking de renda. De forma que os mais rico dos ricos
valem menos (peso 1) e o mais pobre dos pobres vale mais (peso 10 no
exemplo). Nessa métrica cada um vale inversamente ao que ganha,
invertendo a lógica de contabilidade social do PIB.
País é a maquete do mundo: os índices de Gini caem de 0,6 para 0,54
nos anos 2000, aqui e do mundo
A desigualdade é derivada da função bem-estar. Tal mãe, tal filha. O
Gini, o índice de desigualdade mais popular, herda no seu cálculo os
pesos da função bem estar citada acima onde os mais pobres valem mais.
O Gini varia de 0 a 1: no seu mínimo todos são iguais, e no seu ápice
uma pessoa detém todos os recursos da economia. Não existe medida,
certa ou errada, são apenas óticas diversas que enxergam aspectos
diferentes das mesmas situações.
O livro de Branko Milotovic do Banco Mundial de 2011 calcula o Gini de
renda mundial calculando as diferenças de renda média entre países
ponderados pela respectiva população. O exercício assume desigualdade
zero dentro de cada país.
Na visão de Roberto Martins, a trajetória da desigualdade de renda
brasileira de 1970 a 2000, lembra o cardiograma de um morto. O único
sinal de vida foi dado no movimento de concentração de renda ocorrida
entre 1960 e 1970 quando o Gini chega próximo a 0,6 e se estabiliza
neste patamar. A desigualdade mundial de renda entre países ilustrada
no mesmo gráfico está sujeita a mesma analogia do morto entre 1964 e
1990. Há paralelas neste período entre as desigualdades brasileira e
global e o eixo das abscissas.
A desigualdade de renda mundial começa a cair com o crescimento
chinês, indo de 0,63 em 1990 para 0,61 em 2000. E sofre inflexão mais
acentuada a partir de 2000 com a entrada do milagre indiano em cena.
China e Índia abrigam mais de metade dos pobres da aldeia global. O
fato é que depois do crescimento da ChÍndia na década passada, o Gini
mundial cai para 0,54 em 2009 chegando ao piso da série iniciada em
idos dos anos 1950.
Já a queda brasileira se dá nos anos 2000. Após 30 anos de alta
desigualdade inercial, o Gini começa a cair em 2001 passando de 0,6 a
0,54 em 2009. Ambos valores são muito próximos dos níveis observados
no mundo próximos daquelas datas. A escala das distâncias internas
entre brasileiros é como uma maquete, similar àquelas observadas entre
diferentes nações do mundo. Se o ponto de partida e o desfecho da
desigualdade brasileira e mundial se equivalem, o Brasil não é apenas
a foto mas o filme do mundo.
Ao estender as séries usando as variações compatibilizadas pela PME, a
desigualdade continua em queda. Em 2010, cruza o piso de 1960 e entra
no 12º ano de queda consecutiva. Em janeiro de 2012 o Gini atinge
0,519, caindo no ano passado a uma taxa quase duas vezes mais
acelerada que dos primeiros anos da década passada. O descolamento
entre emergentes e desenvolvidos se acentua com as crises recentes
seja entre pessoas ou localidades brasileiras, seja entre países do
globo.
Os primeiros anos do início do novo milênio serão conhecidos nos
futuros livros de história brasileira e de história geral, como de
redução da desigualdade. Em contraste com os motivos da ocupação de
ícones de riqueza americana e europeia a começar por Wall Street.
Lanço na Bolsa de São Paulo no dia 7/3, às 19 horas, livro sobre os
emergentes dos emergentes.
Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e
professor da EPGE/FGV. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura
Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério
Nordestino e o Grammen brasileiro"