Dois fantasmas estiveram presentes na história da América do Sul do
século XX: o autoritarismo e a inflação. Em alguns momentos, chegaram
juntos. Às vezes, o autoritarismo se vestiu com o discurso
modernizante e benemérito. Perón fez isso na Argentina com os
"descamisados", Getúlio fez isso com a legislação trabalhista. Em
alguns vizinhos os fantasmas voltam a rondar recentemente.
Traços desse caudilhismo benemérito estão na Venezuela de Hugo Chávez.
Ele implantou políticas públicas importantes num país que tem uma alta
taxa de pobreza e miséria. Surgiu e se fortaleceu nas falhas do
sistema político tradicional, que em décadas no poder - no revezamento
entre Copei e Ação Democrática - mantinha a mesma oligarquia e a mesma
exclusão no país.
O problema de Chávez, demonstrado nesses 13 anos no poder, é o uso da
democracia contra a democracia. Ele ameaçou e encurralou a imprensa,
mudou regras eleitorais para se beneficiar, fez eleições que lhe deram
maioria e usou as maiorias para mudar a Constituição em seu favor. A
oposição perdeu-se em seus erros. Para e eleição deste ano, ela se
uniu em torno de Henrique Capriles, governador de Miranda, e pela
primeira vez em muito tempo parece competitiva.
Ao mesmo tempo, a economia sente o peso dos gastos sem lastro do
governo Chávez, da hostilidade aos investidores locais e estrangeiros
e da instabilidade normativa do governo. Os supermercados enfrentam
crônico desabastecimento e a inflação está entre 25% e 30% ao ano há
muito tempo. Isso faz com que o dinheiro dado ao pobre perca valor
mais rapidamente. O país cresceu 4,5% no ano passado, mas depois de
dois anos de recessão.
É nesse contexto que surge um fator que aumenta o grau de incerteza do
país, o câncer de Chávez, que está agora enfrentando sua segunda
cirurgia. Como ele manteve o poder espalhando o conflito na sociedade,
a Venezuela enfrentará nos próximos anos tempos instáveis, qualquer
que seja a evolução dos acontecimentos.
A Argentina dos Kirchner vive um quadro parecido em alguns pontos.
Cristina iniciou com força seu segundo mandato e aproveitou o bônus
eleitoral para aprovar lei que encurrala a imprensa: por um lado, a
censura; por outro, o controle da matéria-prima dos jornais, o papel.
O governo argentino não fez tantas barbaridades constitucionais quanto
Chávez, mas está desorganizando a economia.
A inflação está alta e o governo decidiu brigar com os índices. Os
números subversivos sofrem perseguição. O governo fabrica os seus no
Indec (o IBGE argentino) e multa o instituto privado que divulgar seus
dados. Garante que a inflação está em 9%, mas seus próprios
companheiros da CGT pedem 25% nas negociações trabalhistas alegando
que querem a reposição da inflação. Em quatro anos, ela acumula 137%.
A revista "Economist" decidiu que não vai mais publicar índices
oficiais da Argentina entre os mais de mil dados de todos os países
que publica semanalmente. A revista, num artigo com o título "Não
minta para mim, Argentina", avisa que passará a usar o índice feito
nos Estados Unidos por internet, que testado no Brasil e na Venezuela
conseguem se aproximar muito dos índices oficiais. O que leva um país
que enfrentou 200% de inflação ao mês a brincar com um inimigo desses?
No Equador, o presidente Rafael Correa decidiu seguir um roteiro
inspirado em Hugo Chávez. Foi para a Justiça contra um jornal e um
editorialista, pedindo uma indenização milionária e a prisão dos donos
do "El Universo" e do autor do texto. O artigo foi republicado em oito
jornais do Grupo de Diários América, inclusive no GLOBO, na
sexta-feira. Saiu em 55 jornais da Colômbia.
No artigo, Correa é criticado e chamado de ditador pela maneira como
conduziu um caso de protesto policial. Mais do que o fato em si é a
maneira de enfrentar a crítica. Primeiro, ele mudou a Suprema Corte e
trocou seus integrantes. Depois, submeteu seu processo contra o jornal
e o jornalista. E o que aconteceu? Bingo! Ele ganhou a causa. O
jornalista Emílio Palácio está pedindo asilo, os donos do jornal "El
Universo" também estão fora do país, e o jornal está ameaçado por uma
dívida que é maior do que o seu patrimônio. O presidente vem dando
sinais de que pode "perdoar" os donos do jornal e o ex-editorialista
da pena de prisão.
Os governantes na América do Sul que chegaram ao poder pelas eleições
e com programas de combate à pobreza atendem a velhas demandas da
sociedade, que quer ser democrática e menos desigual. Lamentável que
alguns tenham preferido o caminho de minar pilares da democracia,
perseguir adversários, ameaçar a imprensa, intervir no Judiciário e
manipular eleições subsequentes para permanecer no poder.
O caudilhismo benemérito já vivemos. Alguns deixaram suas ambiguidades
a confundir historiadores. Getúlio foi ditador e governante eleito.
Representou a seu tempo o progresso social e trabalhista mas comandou
uma polícia política violenta, instaurou a censura do DIP,
Departamento de Imprensa e Propaganda, e impôs uma Constituição.
Temos aqui exemplos demais para mostrar que o caminho é democracia com
estabilidade econômica.