O Estado de S.Paulo - 15/02/12
O cavalo e suas associações simbólicas são - e o que não é? - bem maiores do que eu pensava. Não há como falar de cavalos sem esquecer alguma coisa. Paga-se um preço quando se fala da continuidade criada entre um cavaleiro e o seu cavalo. Há que se desfazê-la caindo do cavalo. No caso, a queda veio do meu esquecimento de algo lembrado por um leitor atento que, com isso, retoma o jogo crucial entre a memória explícita do escritor e a implícita do leitor - dando testemunho de uma memória interdependente ou "coletiva", que jamais deixa de lado lembrar o esquecido e esquecer o lembrado, nisso que constitui o que chamamos de falta, acusação, arrependimento e culpa. Esses pilares de nosso pequeno mundo aparentemente delineado por uma coisa denominada consciência individual.
Desta feita, o leitor um tanto indignado admoesta muito justamente o cronista. Como falar em "cavalo de santo" se - diz ele - ao comentar o musical do Tim Maia, eu não mencionava o nome do jovem e talentosíssimo ator Tiago Abravanel, que é justamente o "cavalo" de Tim Maia, e, assim, traz um morto ilustre à vida. Na mensagem, tomo consciência de ter citado por quatro vezes o autor do espetáculo, Nelsinho Motta, mas deixo de lado Tiago Abravanel, o personagem central do drama. O ator que, anulando seu corpo e sua alma, abre dentro de si o generoso espaço para a manifestação dos erros e das qualidades - enfim, daquilo que eventualmente fica de alguns de nós - do espírito de Tim Maia.
Ao receber a mensagem, caí do cavalo. E pensei: afinal, se há santo e cavalo, quem é o mais importante? Sem o cavalo, não há lembrança - esse apanágio do santo e do gênio. Mas sem a excepcionalidade do ator - do cavaleiro - não haveria cavalos. Algo ficou de fora como, aliás, acontece em tudo o que é humano. Claude Lévi-Strauss, para ficarmos com um dos craques das manobras dos símbolos e do inconsciente como poucos, distingue na sua vasta obra, quatro famílias de linguagens fundamentais: a da matemática, em que a mente fala consigo mesma sem constrangimentos; a das línguas naturais, em que som e sentido se autoconstrangem; a da música, que seria a do som sem sentido; e a dos mitos, feita - como ele gostava de surpreender - de muito significado, mas pouco som! Há sempre uma falta...
Ao focar o cavalo, não fiz como os astecas e esqueci o cavaleiro. A minha amnésia trouxe a lembrança de um leitor. Pergunto-me se isso não é, em miniatura, o drama da própria condição humana que, sendo incapaz de esgotar qualquer assunto, nos leva a essa busca deslumbrada e infinita dos outros e descobre a falha por meio dos que olham de outros ângulos. Afinal, não é isso que também define a alternativa, base da alteridade? Mas ao comentar o que falta (o que foi esquecido, mas é lembrado), faz-se a luz e o escritor, cercado pelas paliçadas de sua onipotência, verifica que através do leitor ele se abre à lembrança. E, quando a desvenda, atenta que caiu do cavalo.
Hoje, eu faço o reparo e cito com admiração e carinho o Tiago Abravanel como Tim Maia. Mas imagino imediatamente uma nova mensagem de um outro leitor, cobrando-me agora o nome do diretor do espetáculo; e de um outro, o nome dos coadjuvantes e dos músicos; e ainda de um outro - por que não? -, o nome de todos que estavam na plateia, já que todo ritual tem dois lados que se complementam. O do palco (ou altar), iluminado pelos sacerdotes atores, e o da obscura e relativamente inominada mas essencial plateia, à espera do milagre. Embora a luz só incida sobre um lado, ambos fabricam o espetáculo que, dependendo do seu gênero, faz o fosso aparecer e desaparecer na medida em que o rito se desenrola.
O ator precisa do público tanto quanto os deuses precisam dos seus devotos. Sem os sacrifícios, as esperanças, o sofrimento e a gratidão dos piedosos, os deuses seriam esquecidos. Por isso eles nos fazem sofrer. Sem o sofrimento não haveria súplicas nem relações. O laço é o arrimo do amor. Sabemos que precisamos dos deuses, mas - eis o que aprendi com Durkheim e seus alunos - eles também precisam de nós. Das nossas orações, louvores, sacrifícios e da nossa devoção e lealdade. Uma rosa não é uma rosa sem o olho que a vê.
Plantados na terra vemos mais as estrelas. Mas quem foi que disse que elas não olham para nós e nos veem como pequenos fogos, tanto mais insignificantes e comoventes quanto os seus descorados brilhos? O que seria da estrela-guia sem o pastor? Haveria o tal cavalo branco sem um São Jorge para montá-lo? Como reconheço, é preciso ver o cavalo, mas não esquecer o cavaleiro.
Ademais, ninguém fica montado todo o tempo, embora tenha gente planejando isso o tempo todo. A dimensão mais preciosa da igualdade é a descoberta de que o produto precisa do consumidor e o vencedor precisa do vencido para legitimá-lo. Do mesmo modo que o santo não existe sem o seu cavalo.
Os cavalos são meios e fins. Por isso, o cronista idoso e grato ao seu esquecimento que engendra leitores generosos, termina com uma quadra roubada de Câmara Cascudo:
"Fui moço, hoje sou velho,
Morro quando Deus quiser,
Duas coisas apreciei:
Cavalo bom e mulher".