A campanha municipal deste ano poderá ser considerada como o
coroamento do ciclo da redemocratização iniciado na década de 1980. O
conceito do momento é o de contemporização, usado pelos partidos para
fazer convergir pontos de vista, integrar escopos ideológicos,
principalmente os alinhados à social-democracia. Várias siglas
compartilham hoje o espaço por ela habitado. O sopro contemporizador
implica também formação de alianças a torto e a direito, sem vetos de
uns a cores partidárias de outros, na esteira de um pragmatismo
inusitado, focado no alargamento dos espaços de poder.
A mais expressiva sinalização nessa direção é dada pelo ex-presidente
Lula ao procurar atrair o PSD, do prefeito Gilberto Kassab, para a
campanha de Fernando Haddad (PT). Outros entes ditos de esquerda, como
PSB e PCdoB, também se inclinam a estabelecer parcerias com siglas
distanciadas de sua posição no arco ideológico, corroborando a ideia
de que um gigantesco ajuntamento partidário ocupa o centro da cena
eleitoral. Tal iniciativa precede o realinhamento da moldura
político-institucional, a se iniciar após o pleito.
Há quem veja nessa movimentação interpartidária irresponsabilidade
política e ideológica. Apontam-se, entre as razões, a desidratação do
debate político, o esvaziamento dos conteúdos partidários e dos grupos
de oposição, fatores debitados à "mediocridade das elites dominantes",
nas palavras do historiador Carlos Guilherme Mota (Estado, 19/2). Será
que o País chegou mesmo ao degrau mais baixo da escada civilizatória
em matéria de política ou há fundamentos para acreditar que atravessa
mais um momento de transição, como tem ocorrido no processo de
consolidação de suas instituições?
É oportuno lembrar que a desvitalização das instituições políticas não
é um fenômeno brasileiro. A imbricação (pragmática) das siglas
nacionais se dá na esteira da crise que assola a democracia
contemporânea, cujos vértices podem ser assim enumerados:
pasteurização doutrinária, desradicalização e declínio dos partidos,
queda de ânimo dos participantes, enfraquecimento dos Parlamentos,
fortalecimento do Poder Executivo e arrefecimento das oposições.
O amortecimento dos mecanismos políticos clássicos, na visão do
sociólogo Roger-Gérard Schwartzenberg, expande-se no seio da
"tecnodemocracia", sistema alicerçado em vastas e complexas
organizações administradas por uma nova oligarquia econômica, mais
dependente do Estado que a velha democracia liberal. Sob esse império,
expandido a partir da queda do Muro de Berlim, floresce nova ordem
política e social, em que não há mais lugar para particularismos
ideológicos e intransigências doutrinais. A política refunde-se e se
redistribui, agora cultivando regiões, associações, setores
organizados, que passam a funcionar como novos circuitos de
representação. A expansão econômica, alterando as clivagens
partidárias do passado, substitui o antagonismo de classes por diálogo
e negociação. Os partidos de massa dão lugar aos catch-all parties
(partidos agarra-tudo), cuja inspiração é chegar ao poder a qualquer
custo e a qualquer momento. O similar brasileiro seria o
partido-ônibus, que recebe passageiros a qualquer hora e em qualquer
estação.
A análise da política brasileira fora desse painel corre o risco de
ganhar viés indesejável. Dito isso, convém recordar que a dinâmica da
política obedece a um movimento pendular, com altos e baixos, na
sequência de ciclos democráticos alternados com ciclos autoritários.
As curvas no caminho da democracia desmantelam a identidade
partidária. No período democrático 1945-1964, nossas agremiações
tinham limites definidos: o PTB, um partido de massas, agrupava bases
trabalhistas e conquistas da era Vargas; a UDN representava as elites
urbanas e a aristocracia; e o velho PSD tinha suas raízes fincadas nas
oligarquias rurais. A ditadura de 64 empacotou esse retrato. Criou a
Arena, herdeira das bases udenistas e de parte das pessedistas, e o
MDB, que teve papel transcendental na redemocratização e passou a
agregar correntes trabalhistas, grupamentos de outros partidos e os
movimentos de massa dos anos 80. A seguir, desdobrados da matriz
partidária, nasceram o PSDB e o PT, o primeiro ancorado no ideário da
social democracia e o segundo, portando a bandeira do socialismo, sob
liderança de Lula, juntou núcleos de trabalhadores, intelectuais de
esquerda e setores da Igreja Católica.
De lá para cá, a crise intermitente na esfera política nivelou por
baixo a malha partidária, escancarando um painel negativo: escândalos
em série flagrando atores políticos; obsolescência do sistema
eleitoral com suas contrafações, como a modelagem proporcional, pela
qual o eleitor vota num candidato e acaba elegendo outro;
competitividade partidária, inspirada no lema "o poder pelo poder".
Registram-se, é oportuno frisar, coisas positivas, como o controle da
inflação e o Plano Real, triunfos do governo FHC; a consolidação de
grandes conquistas, a partir da inserção de 30 milhões de brasileiros
no meio da pirâmide, na era Lula; decisões de vulto tomadas na esfera
do Supremo Tribunal Federal.
Agora, na administração Dilma Rousseff, uma inflexão se faz
necessária: o petismo/lulismo agora terá de repartir com parceiros de
proa - PMDB, PSB, PDT, PTB, PP - glórias e insucessos do ciclo que se
inaugura no País. Em suma, o período Lula fechou o portão da era 64. A
dinâmica política, doravante, será carimbada com o prefixo pós.
Radicalismos estão sendo arquivados. Na nova trajetória, o espaço
ideal é o centro e as palavras de ordem são diálogo e pragmatismo.
Lula sabe, por exemplo, que o PT precisa de uns 15% a mais de votos em
São Paulo para seu candidato, Haddad, ultrapassar os 30% históricos do
partido.
Resumo da ópera: quem quiser enxergar densidade ideológica no pleito
municipal deste ano, principalmente nas campanhas dos maiores
partidos, deverá ficar a ver navios.