O Estado de S.Paulo - 14/02/12
Por alguma razão que talvez cientistas políticos, sociólogos ou até psicólogos sociais possam explicar melhor, o substantivo feminino "privatização", derivado do verbo "privatizar", mexe fundo com a alma política brasileira. É o que se está repetindo agora, depois da concessão, pelo governo Dilma Rousseff, à iniciativa privada, da exploração dos três mais movimentados aeroportos brasileiros.
Discute-se, acaloradamente, se conceder patrimônio erguido e mantido pelo poder público significa ou não privatizar. Diante do alto teor de combustão do tema, faz sentido para o jogo político. Mas, enquanto isso, a discussão sobre a eficácia da concessão - ou da privatização - dorme em segundo plano. Se fosse dedicada maior atenção à história do que já ocorreu nesse campo, conviria inverter o polo do debate.
Essa história mostra que privatizar - ou conceder - pode ser uma ação necessária, mas nem sempre suficiente para alcançar o objetivo de desafogar a infraestrutura e prover serviços de qualidade a preços apropriados. É preciso ir além da privatização e definir planos completos, integrados e abrangentes para o conjunto do setor, antes de transferir os serviços para a iniciativa privada.
No atual caso dos aeroportos, o governo começou mal. Antes de tudo porque demorou demais. Depois, porque o resultado dos leilões levantou desconfianças sobre a capacidade técnica e financeira dos vencedores para cumprir as obrigações assumidas, e deixou no ar dúvidas sobre os cálculos de viabilidade econômica, diante dos valores oferecidos. Até o ministro da Fazenda, possivelmente expressando preocupações da própria presidente Dilma, convocou para explicações dirigentes dos fundos de pensão de empresas públicas que integram um dos consórcios.
Olhando para a história, contudo, o governo começou pior ainda. O leilão dos três primeiros aeroportos - compreensivelmente, os mais movimentados - veio antes da definição de um plano setorial abrangente. Não foi muito diferente do que ocorreu no caso do setor elétrico, no qual as distribuidoras estaduais foram privatizadas em série, em meio a uma paralisia de investimentos estatais nos segmentos de geração e transmissão.
Difícil esquecer o apagão e o racionamento de 2001, mas talvez nem todos se lembrem, além da estiagem, dos determinantes do problema. Um dos principais foi o aumento do consumo proporcionado pelas privatizações das distribuidoras, sem a devida sustentação de investimentos na ampliação e melhoria da geração e da transmissão.
O ministro Wagner Bittencourt, chefe da Secretaria de Aviação Civil, promete um plano setorial abrangente até fins de março. Bittencourt afirma que, até lá, anunciará quais, entre os outros 60 aeroportos administrados pela Infraero, permanecerão sob controle estatal, serão privatizados ou transferidos a Estados e municípios. Mas quem garante?
Supondo que esse plano saia do papel, as concessões avancem e tudo funcione como deveria - e, portanto, o desafogo e a ampliação do tráfego em parte do sistema privatizado não será abortado pela falta de investimentos no restante dos aeroportos -, ainda assim não basta privatizar e trabalhar com um plano de referência bem elaborado para assegurar aos usuários serviços de qualidade a preços razoáveis. Um balanço das privatizações brasileiras das últimas três décadas indica, em muitos setores cruciais, investimentos abaixo do requerido e tarifas acima do desejável. Problemas de fiscalização que as agências reguladoras - elas também são parte do problema - não se mostram capazes de fazer cumprir.
No setor elétrico, por exemplo, a geração está entre as mais baratas do mundo, mas quando se incorporam cotas de transmissão, custos de distribuição e impostos, a tarifa voa para uma posição entre as mais altas. A tarifa média paga pela indústria é 50% maior do que a média mundial e, mesmo descontando impostos e taxas setoriais, que respondem por quase metade dos preços cobrados, a indústria brasileira paga mais do que a maior parte dos seus grandes competidores globais.
Uma década e meia depois da primeira privatização no setor de energia, ele continua como elemento de destaque no conjunto de distorções que formam o "custo Brasil". Essa história já mais antiga, ainda sem final feliz, poderia ser útil como roteiro para os aeroportos, mas a preferência nacional por desperdiçar energia no debate das pequenas diferenças pode levá-lo, depois do atraso em entrar na pista, a correr riscos na decolagem.